por Monica Aiub
É possível um estudante fazer ciência? Há alguma relação entre o professor, o aluno e o cientista? Como aprendemos? Como construímos nossos conhecimentos sobre o mundo? O conhecimento comum pode se tornar ciência? E a ciência pode ser transformada num conhecimento de senso comum, caso cristalizada? O que fazemos em nossas escolas é ciência? É conhecimento?
Essas foram algumas das questões discutidas em nosso II Encontro de Filosofia Clínica e Educação no Espaço Cultural IBEP (leia mais), em São Paulo, que tratou das relações entre as duas áreas a partir do pensamento de Gaston Bachelard, em especial, em sua obra “A formação do espírito científico”, de 1938. Através da exposição de César Mendes da Costa – que coordena o grupo de pesquisa Filosofia Clínica e Educação do Instituto Interseção – leia mais – apresentando alguns conceitos do pensamento de Bachelard e da filosofia clínica aplicada à educação, conversamos acerca da importância do professor ser um pesquisador e, consequentemente, ao preparar e ministrar suas aulas, fazer ciência. Também foi destaque do Encontro, a imprescindível necessidade do professor promover e suscitar o espírito científico nos educandos.
Todos nós trazemos conosco uma série de conhecimentos adquiridos no decorrer de nossas vidas. Quando tomamos esses conhecimentos como verdades, sem questioná-los, cristalizamos um saber, tornando-o envelhecido, estático. Tendemos a reproduzi-lo e, aquilo que era fruto de uma experiência observada, ou do estudo de teorias científicas, passa a ser tratado como senso comum, ou seja, não é verificado, refletido. Ao suscitarmos a dúvida sobre tal saber, o colocamos em movimento, permitindo que seja retificado ou ratificado, e desta forma, renovado. Assim, um conhecimento científico, se for simplesmente reproduzido, não permitirá o avanço da ciência, nem a produção de novos saberes.
O que a ciência representa em nossas vidas? Você, habitualmente, questiona o “saber científico” divulgado pelos meios de comunicação? Este saber, recebido por tais meios, tem influências sobre seus hábitos cotidianos? Altera, em algum aspecto, a sua vida? E o saber adquirido através dos livros e artigos científicos, traz alguma movimentação a sua vida? Você questiona este saber?
Muitas pessoas partem do saber científico como um referencial para orientar suas vidas. Referências sobre normalidade e patologias, que as fazem procurar tratamentos, modificar rotina; dados sobre as melhores formas para atingir a longevidade, que as fazem incluir ou excluir, em seu cardápio e em suas atividades diárias, vários elementos; pesquisas sobre comportamento, que as levam a cobrar dos outros e de si mesmas posturas específicas, direcionadas por tais pesquisas. Para muitos, se a ciência afirma, assim é, pois a ciência tem resultados exatos, experimentados, válidos universalmente.
Contudo, o próprio cientista sabe que a ciência precisa ser colocada em dúvida, seus resultados precisam ser testados continuamente, revalidados ou não. É a dúvida que permite à ciência avançar. Não a dúvida pela dúvida, mas a dúvida que promove a investigação, que modifica os hábitos, não nos permitindo aceitar, sem maiores pesquisas, os resultados e teses que se apresentam.
Por isso, fazer ciência é algo que mantém o conhecimento jovem, pois o coloca em movimento, renovando-o. Da mesma maneira, aquele que conhece, através de seus processos de aprendizagem, movimenta seu existir, alterando seus hábitos, colocando em prática o conhecido. Questionar os conhecimentos cristalizados que orientam nosso existir, renovando-os, permite a renovação da própria existência.
Diante de constatações como estas, alguns participantes do evento espantaram-se com o fato da descoberta científica não estar “imune à dúvida e à retificação”, ou seja, a ciência não tem resultados inquestionáveis. De um lado, isto parece óbvio: A ciência precisa de constante revisão, questionamento, investigação; ela é movida por nossas inquietações. De outro, há a compreensão equivocada de uma ciência cristalizada, que descobre a natureza e, a partir de sua descoberta, define nossas formas de vida. Equívoco que acompanha uma educação “bancária”, na qual o aluno apenas recebe um conhecimento pronto, o arquiva, e devolve na avaliação, em forma de reprodução.
Quem é o cientista? A imagem mitificada de um “gênio”, de um “superdotado”, de alguém “superior” aos demais ainda permanece entre nós. Melhor seria a de um “apaixonado”, que tocado pela inquietação do saber, movido pela dúvida e por suas constantes perguntas, não se contenta com as respostas dadas a seus questionamentos, necessitando atender às demandas de seu “espírito científico”. O bom cientista não é aquele que oferece respostas boas, mas aquele que faz boas perguntas, e se permite mergulhar nas pesquisas em busca de elementos que ampliem sua compreensão. O bom cientista é aquele que coloca o saber da ciência e da vida em movimento, renovando-o constantemente.
Mas como formar bons cientistas se nossa educação parte de uma concepção de ciência cristalizada?
Como desenvolver o espírito investigativo, se o que se espera de um professor é que ele repita, reproduza os conteúdos, os saberes elaborados e cristalizados por cada uma das ciências?
Pior, espera-se que o professor cobre de seu aluno, novamente, a reprodução de tais conteúdos… Até onde iremos com esses processos reprodutivos, que tornam nossos saberes cristalizados, e nossa prática cada dia menos criativa?
Isto é produção de conhecimento?
Isto é educação?
Que posturas esperar de alguém que foi educado reproduzindo conceitos cristalizados, conceitos que talvez não façam sentido às condições atuais de seu existir?
O que esperar de alguém que aprende que seus conhecimentos não têm valor diante de uma ciência que não é acessível a ele?
Se somente o cientista, um ser “superdotado”, dentro de seu laboratório, é capaz de produzir um saber, por que motivos valorizar o conhecimento?
Formação do espírito científico
Para que o professor possa provocar nos estudantes “a formação do espírito científico”, é preciso que, antes, ele mesmo faça ciência. Fazer ciência, aqui, significa possuir tal “espírito científico”, colocando os conhecimentos com os quais trabalha em dúvida, em questionamento; significa manter-se inquieto e em constante aprendizagem. Sua aprendizagem deve se dar não somente no que se refere aos conteúdos da disciplina que ministra, mas também acerca de outras áreas que estabeleçam fronteiras com ela; sobre o próprio existir e, principalmente, sobre os educandos com os quais trabalha.
Preparar suas aulas é fazer ciência; é colocar em dúvida, em movimento, os saberes; é investigar os modos de existência e os saberes levados à sala de aula por seus alunos; é provocar a investigação sobre tais modos e saberes, colocando-os em movimento. Ou seja, o professor é um pesquisador que, ao mesmo tempo em que ensina, aprende.
Um aluno não chega à escola com conhecimento zero. Ele já chega mergulhado em uma cultura, com uma linguagem, com hábitos adquiridos, com modos de vida. É preciso que o professor observe o conhecimento que o aluno leva consigo, e o coloque em questionamento, levando-o a pesquisar. Desta forma, seus conhecimentos serão renovados, ao mesmo tempo em que se cria o “espírito científico”, o hábito da investigação.
Um erro de alguns professores é considerar seus alunos incapazes de desenvolver determinadas pesquisas, antes mesmo de conhecê-los. Como chegaram a tais conclusões acerca da incapacidade de alguém que desconhecem? Como saber sobre a capacidade de alguém antes de investigá-la? De testá-la? “Alunos mal são capazes de ler um texto, não conseguem escrever um parágrafo, não sabem raciocinar, como podem fazer ciência?” – dizem alguns. Mas, verdadeiramente, o que sabem estes professores sobre seus alunos e suas capacidades?
Qual a relação de tudo isso com a filosofia clínica aplicada à educação?
Em primeiro lugar, por ser filosofia, a filosofia clínica exige a constante investigação, a constante pesquisa. Em seus processos de atualização, não permite cristalizar os saberes. Ainda que tenhamos um conhecimento sobre a pessoa com a qual trabalhamos, derivado de pesquisas, este conhecimento não está “imune à dúvida e à retificação”, ou seja, constantemente deve ser colocado em dúvida, retificado ou ratificado.
Seu instrumental oferece elementos para investigar, pesquisar. Parte-se sempre do “saber” do partilhante (paciente em filosofia clínica), daquilo que ele traz como resultado de suas vivências. Observando seus processos, o filósofo clínico o provoca a pensar não apenas sobre seus saberes, mas sobre os processos através dos quais os constitui.
Os mesmos procedimentos, considerando não as questões singulares do partilhante, mas os objetivos educacionais, podem ser utilizados pelo professor para conhecer os estudantes com os quais trabalha, e a partir dos dados observados, escolher ou criar os materiais e métodos mais adequados para a investigação.
Ainda que construídas a partir dos dados coletados em pesquisas iniciais, as maneiras de conduzir o trabalho em sala de aula necessitarão de constante revisão, acompanhando as inquietações e as investigações de cada aluno, grupo ou turma. Trata-se de uma aprendizagem constante, tanto do professor, quanto dos estudantes e, por vezes, de toda uma comunidade.
Você consegue imaginar uma escola onde professores e estudantes, juntos, “apaixonados” pelo saber, “tomados” pelo “espírito científico”, transformem seu cotidiano escolar num processo contínuo de investigação, fazendo ciência a cada aula? O quanto avançaríamos se desenvolvêssemos o “espírito científico” em nossas crianças? E se o mantivéssemos vivo em nosso cotidiano? O que você ensinou hoje? O que você questionou hoje? O que você aprendeu hoje? Talvez fossem perguntas importantes a serem feitas diariamente.
Para saber mais:
AIUB, Monica. Filosofia Clínica e Educação: A atuação do filósofo no cotidiano escolar. Rio de Janeiro: WAK, 2005.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.