por Monica Aiub
Comecemos com Karl Jaspers que, em Introdução ao Pensamento Filosófico, apresentou várias oposições que surgem na relação entre mundo e filosofia.
"Mas como se põe o mundo em relação com a filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades. Atualmente, representam uma posição embaraçosa. Por força da tradição, a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objeto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas – existirá realmente? Sua existência se prova, quando menos, pelas medidas de defesa a que dá lugar.
A oposição se traduz em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está além de meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; cabe abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer de atividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.
A polêmica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar a minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente."
Um dos pontos geradores do “medo”, citado pela leitora, encontra-se na abordagem de Jaspers. A filosofia nos provoca a rever idéias, posicionamentos. Isso não implica, num primeiro momento, em negá-los, apenas questioná-los, avaliá-los. Mas é assustador, para algumas pessoas, colocar suas crenças em avaliação. Estamos, muitas vezes, tão fixados em nossas formas de vida, em nossas crenças, que o simples questionamento, o pensar na possibilidade de não termos motivos para aceitá-los como são, nos causa medo, nos apavora.
Se considerássemos que o questionamento nos levará a avaliar nossas formas de vida, e que se forem, de fato, as melhores escolhas para nós, elas serão mantidas tal e qual se apresentam, não teríamos o que temer. Se considerássemos também que, caso descubramos que nossas formas de vida não são as melhores escolhas, teríamos a possibilidade de modificá-las, tornando nossas vidas melhores, esse seria um bom motivo para filosofar. E ainda, se lembrássemos que o fato de nossa escolha não ser a melhor não nos obriga a abandoná-la, isso seria acalentador para alguns. Para outros, mais assustador ainda, porque além de constatar que essa opção não é a melhor, constatariam ter a liberdade para escolher entre mantê-la ou modificá-la.
Há ainda outro aspecto abordado por Jaspers, na seqüência do texto:
Muitos políticos vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensine, menos estarão os homens arriscados a se deixar tocar pela luz da filosofia.
Antifilosofia
Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão fazendo. E permanecem inconscientes de que a antifilosofia é uma filosofia, embora pervertida, que se aprofundada, engendraria sua própria aniquilação.
Não é à toa que em 1964, com o golpe militar, disciplinas como filosofia, sociologia e psicologia foram retiradas das escolas em nosso país e só retornaram, aos poucos e timidamente, a partir da abertura política, em 1985. Quando digo “timidamente”, refiro-me ao fato de somente agora, em junho de 2008, ter sido aprovada a lei que garante o retorno da filosofia e da sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio.
Muitas escolas já incluíram em seus currículos a disciplina filosofia, há até aquelas que já ampliaram a inclusão para o Ensino Fundamental, mas dada a não obrigatoriedade, muitas outras optaram por não tê-la na formação de seus estudantes. Hoje o quadro se reverte e a filosofia volta para as escolas.
O medo da filosofia, no sentido proposto por Jaspers, seria agora o medo de uma população capaz de “pensar por si mesma”, capaz de refletir sobre seu processo social e de buscar caminhos para construir novas formas de vida.
Para aqueles insatisfeitos com as formas presentes, uma reflexão bem-vinda. Para aqueles satisfeitos com as formas atuais, aqueles que se beneficiam com a estrutura vigente, um perigo, pois poderiam perder o poder que possuem. Assim, melhor colocar-se como inimigo da filosofia, não sem, contudo, estudá-la profundamente, para fazer uso de seus elementos de modo a manter-se no poder. Mas mais do que isso, é importante apresentá-la como algo complexo demais, desagradável, antipático, inútil e muitos outros adjetivos que distanciem as pessoas do filosofar.
Filosofia in, elitização e banalização
Também é importante lembrar aos leitores que a filosofia, no momento presente, está na moda, ela é incentivada. E esse é um ponto também destacado por Jaspers. Ele apresenta duas formas de destruirmos a filosofia: a elitização e a banalização.
Elitizar e banalizar a filosofia – No primeiro caso a torna inviável e no segundo, inútil A elitização prega que a filosofia é complexa, difícil, inacessível. Um estudo para “eleitos”, que possuem uma “vocação natural” para esse tipo de saber. Dificultar – tanto com o uso de uma linguagem inacessível, quanto com restrições ao acesso – torna-se uma tarefa fácil e útil ao poder.
O “filósofo”, ao deixar sua vaidade falar mais alto, poderá acreditar ser alguém diferenciado, um ser especial, e com isso tornar-se um propagador de uma antifilosofia.
Por outro lado, a banalização é o movimento inverso. Tudo é filosofia. Minha filosofia de vida, filosofia de botequim. Perde-se, com essa postura, o rigor metodológico, a análise de contexto e a crítica, necessários ao filosofar. Se tudo é filosofia, então não é preciso uma postura investigativa, não é necessária a profundidade e, conseqüentemente, a filosofia perde seu papel.
Talvez essas causas, apontadas por Jaspers, sejam alguns dos motivos que fazem a filosofia possuir essa “má fama”, talvez sejam razões que afastam algumas pessoas do filosofar. Contudo, a necessidade de pensar nossas formas de vida se faz, a cada dia, mais urgente. E com isso a filosofia se apresenta como um caminho. Mas qual filosofia?
E agora encontramos outro aspecto a ser abordado. Poderíamos afirmar que para cada sistema filosófico encontramos uma diferente definição de filosofia. Algumas pessoas fixam-se de tal maneira a um sistema filosófico que passam a ver o mundo a partir dele, a responder tudo de acordo com ele e, com isso, deixam de filosofar para assumir uma postura dogmática, novamente, anti-filosófica.
Um sistema filosófico é gerado a partir das necessidades e questões de uma época. Platão, por exemplo, construiu um sistema filosófico tendo por base o universo da Antiguidade Clássica, em Atenas. Muito do que foi proposto por ele dizia respeito apenas àquela sociedade. Se tomarmos os pensamentos expressos por ele como um caminho a ser trilhado, encontraremos elementos que poderão contribuir muito para as questões contemporâneas, mas também encontraremos elementos que não nos dizem respeito, ou elementos que não apenas seriam inúteis, como prejudiciais a nós.
Diz Nietzsche que Platão foi um filósofo ao criar o conceito de Idéia, mas que fez uma coisa e nos disse para fazer outra: criou um conceito – e nesse sentido foi filósofo – e nos disse para que contemplássemos seu conceito. Segundo Nietzsche, o conceito platônico foi reluzido, lustrado, reproduzido por muitos séculos na História da Filosofia.
Partindo dessa crítica nietzschiana, Deleuze e Guattari, em O que é a Filosofia?, apresentam como tarefa da filosofia tratar as questões que se colocam em nosso plano de realidade, conhecendo os elementos que o compõe, desconstruindo e construindo conceitos com esses e outros elementos, a fim de “responder” a tais questões e provocar um movimento, criando novos planos de realidade. Para quê? Para a construção do mundo no qual viveremos e que deixaremos como herança para as futuras gerações.
Como você, leitor, vê a questão? Considerando as características do mundo no qual vivemos, a filosofia é necessária? Temos motivos para temê-la?
Referências Bibliográficas:
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997.
JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico. São Paulo: Cultrix, 2006.
NIETZSCHE, F. Para além de bem e mal. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.