Um filósofo disse certa vez que nossa pretensão de nos comunicarmos com seres extraterrestres é descabida. Mais valeria nos empenharmos em compreender os seres que nos cercam. Se nada sabemos sobre o que pensa e sente uma galinha, como poderíamos entender um ser extraterrestre? Afinal, a galinha compartilha conosco um ambiente e um longo período de evolução, o que não ocorre com seres de outros planetas. Ela é muito mais próxima a nós que qualquer marciano.
É verdade que temos a pretensão de sermos compreendidos por estranhos enquanto nos comunicamos pessimamente com aqueles que nos são próximos. Nada sabemos das galinhas e nos perguntamos se haveria vida inteligente em outros planetas. Se apenas descobríssemos o tipo de inteligência que as galinhas possuem, talvez se tornasse desnecessário procurar essa qualidade em outros planetas. Se soubéssemos como as galinhas pensam talvez começássemos a suspeitar, inclusive, de nossa noção de inteligência.
Você sabe quem você realmente é? Como você se vê?
É muito frequente agirmos levando em consideração o que somos – ou que julgamos que somos. Assim, tomamos nossas características como qualidades e, a partir delas, começamos a julgar os demais – sejam humanos ou não. A pergunta que evitamos nos fazer é se realmente nossas características são qualidades que poderiam servir de parâmetros para avaliar qualquer outro tipo de ser.
Por exemplo, podemos acreditar que ser honestos é uma coisa boa. A partir disso, avaliamos como positivo todas as formas de comportamento que podem ser considerados honestos e desprezamos todas as modalidades de desonestidade. Criamos uma certa hierarquia entre pessoas honestas e desonestas e evitamos nos tornarmos amigos dessas últimas. Organizamos nossa vida tendo em conta esse tipo de distinção e criamos estruturas de valores à nossa volta baseadas naquelas características iniciais que nos pareceram virtuosas.
Por que a honestidade pode indicar que somos incapazes
O que em geral não fazemos é submeter essas ideias iniciais a algum tipo de consideração mais cuidadosa. Para manter aqui o exemplo, podemos suspeitar se somos honestos porque isso é uma virtude ou porque somos incapazes de agir de outra forma. Pode ser que tenhamos sido educados de uma maneira que agir desonestamente contraria valores que foram introjetados em nós por nossos pais. Se for assim, não agimos honestamente porque somos capazes de evitar as ações desonestas. Somos honestos porque somos incapazes de ser desonestos. Então, em último caso a honestidade que praticamos não é um sinal de nossa capacidade de agir de determinada forma. Ela apenas indica que somos incapazes – de agir de uma maneira diferente daquela que estipula os valores que recebemos através de nossa educação.
O que quero dizer com isso é que seguir uma determinada norma nem sempre é sinal de
termos uma virtude. Existir pode ser como boiar em um conjunto de valores que simplesmente configuram uma vida para nós, sem que jamais tenhamos condições de escolher como viver. Ainda mantendo o mesmo exemplo, somente a suspeita de que ser honesto é realmente uma virtude, poderia nos colocar em condições de conhecer algo de nós mesmos. Somente alguém que é capaz de ser plenamente desonesto e que sabe o que implica a desonestidade poderia ser realmente virtuoso ao se comportar de maneira honesta. Evitar a desonestidade não faz de alguém um ser virtuoso.
É essa capacidade de transformar as nossas aparentes virtudes em problemas que pode efetivamente abrir a possibilidade da prática de uma virtude mais autêntica, que não seja apenas a expressão de nossas fragilidades, do que recebemos por meio da educação, pelo comodismo etc. Fragilidades que, em condições normais de vida, transformamos em características positivas. Assim, podemos dormir tranquilos, confiando que o que somos é bom o bastante.
Mas, se somos completamente estranhos para as galinhas, o que poderíamos dizer de nós mesmos que nos ocultamos do olhar de nós mesmos? O que diria de mim a galinha que me observa lá de dentro, esse ser familiar e absolutamente estranho que prefiro não encarar, essa falsa familiaridade que me habita?