Nos games de terror você não é dono do tempo: o jogador para ter sucesso, não pode interromper o tempo interno do jogo. Essa nova relação de consumo exige a abdicação consciente ou não do controle do tempo.
Há uns 20 anos atrás se podia comprar um jogo para computadores e instalá-lo no seu aparelho. Feito isso, você podia simplesmente acioná-lo quando fosse mais conveniente, talvez em algumas horas de lazer ao longo da semana ou do mês. Na verdade, com esse ato se comprava uma mercadoria que podia ser desfrutada levando-se em consideração o restante de nossas existências. Isso não entrava em conflito com o trabalho ou com a vida familiar. A menos, é claro, que se tratasse de um jogador compulsivo e que não fosse capaz de regrar-se de maneira a preservar o restante de sua vida intacta.
De certa forma, essa aquisição de um simples jogo de computador fazia parte de um sistema de consumo em que o usuário mantinha inteiro controle potencial sobre a mercadoria. Você podia escolher o jogo e, após comprá-lo, bastava optar pelo melhor momento de usá-lo. Nesse simples ato de consumo, você se colocava em uma posição privilegiada, já que cabia-lhe inteiramente a decisão de quando e onde utilizá-lo. Havia, então, uma temporalidade existencial – aquela de nossa vida cotidiana, com nossos compromissos – que era capaz de subordinar esse novo ato de consumo.
Games sem terror: você é dono do tempo
Podemos dizer que estávamos em condições de incorporar a relação dessa nova mercadoria ao tempo que já possuíamos. O tempo pertinente era sempre o do próprio consumidor. Afinal era esse último que administrava a maneira pela qual essa nova atividade de lazer era agregada à sua vida.
Hoje, qualquer um que tentar adquirir um jogo de computador ou para celulares – o que é bem mais comum – ficaria surpreso. Especialmente se você já é velho e tem condições de fazer a comparação que estou tentando estabelecer aqui. A primeira surpresa é que não é necessário realizar uma compra porque há uma infinidade de jogos de todos os tipos disponíveis gratuitamente para download.
Mas a surpresa realmente interessante vem logo depois: não é possível incorporar o consumo de um desses jogos a nossas temporalidades preexistentes. Isto é, um jogo desse tipo não pode ser agregado aos nossos ritmos de vida, porque ele possui sua própria temporalidade rebelde.
A questão é que o ato de compra se estende em função da sagacidade das empresas que criam os jogos. Não faz sentido vender o jogo uma única vez se ele pode ser vendido repetidamente para o mesmo consumidor. Para isso, é necessário submeter o comprador a uma temporalidade alienígena. Assim, nesses jogos não é você que controla o tempo em que as ações se desenvolvem. A instalação do jogo implica na aceitação tácita de uma temporalidade que se impõe sobre o comprador. Embora isso não esteja explícito nos termos de uso.
Me explico: o jogo possui uma série de eventos que você precisa realizar no momento adequado para obter algum sucesso. Essa série está encadeada com uma lógica em que uma etapa subsequente só pode ser realizada após a conclusão da anterior. Até aqui não há nenhuma novidade. O detalhe significativo é que na ausência do jogador a temporalidade não é suspensa, mas segue em um ritmo invariável. Assim o tempo que determina o ritmo das ações que devem ser realizadas está fora do controle do jogador. É a ela que se deve prestar contas, porque é ela que impõe o momento em que as ações devem ocorrer.
Assim, se você se ausenta para fazer outras coisas, se você age como uma pessoa normal que interrompe seus momentos de lazer para falar com a família, com os amigos ou simplesmente fazer outra coisa, o tempo do jogo permanece ativo. Se há algo sendo consumido aqui, certamente não é o jogo! A lógica predominante nesse ambiente, é que o jogador para ter sucesso não pode interromper o tempo interno do jogo. De fato, se o jogador se ausenta, pode ser surpreendido por uma série de eventos que ocorreram naquele período em que ele estava fora. Seu império recém-criado pode simplesmente ser saqueado!
Esse artifício de uma temporalidade que se impõe ao jogador não o torna uma vítima somente da dinâmica dos eventos do jogo. Ele o torna vítima da necessidade de consumo que se renova permanentemente – aquela sagacidade a que me referi antes. Para progredir não basta possuir algumas qualidades específicas como organização, coragem, determinação etc. Antes de qualquer coisa é necessário ter dinheiro para adquirir os atalhos necessários para obter sucesso.
O tempo já é uma mercadoria. Ele pode ser comprado à medida que, para ingressar nesse ambiente, você já recusou sua própria temporalidade, aquela em que você vive. Essa nova relação de consumo exige a abdicação consciente ou não do controle do tempo.
Não é ocasional que as pessoas estejam com sua atenção voltadas cada vez mais para mundos virtuais alternativos. Isso renova a compulsão de compra e prepara-nos para a resignação. Impossível não notar os padrões de comportamento que esse poderoso mecanismo reproduz e amplia: a subordinação do indivíduo a uma lógica estranha a si mesmo e o respeito pelos privilégios dos detentores do poder financeiro. Não acredito que isso seja irreversível. Mas também não acredito que a cultura da subordinação e do respeito ao dinheiro não possua consequências terríveis.