GTA IV: uma experiência híbrida de jogo

por Alexandre Pill – psicólogo do NPPI

Desde o lançamento da primeira versão, em 1997, a série Grand Theft Auto sempre se envolveu em polêmicas e controvérsias. Embora a figura do anti-herói já estivesse bastante difundida em diversas mídias, este era um game que colocava o jogador na pele de um criminoso, cujo objetivo era roubar carros, assaltar bancos e eliminar organizações rivais.

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A franquia, que até então tinha um roteiro quase linear em um ambiente 2D, alcançou em 2001, com o GTA III, proporções épicas: passou a ser ambientada em uma cidade totalmente tridimensional e tornou-se um jogo do estilo sandbox por excelência: além das missões pré-determinadas, que poderiam ser acionadas ao conversar com determinados personagens, o jogo permitia ao jogador interagir livremente com o mundo à sua volta sem qualquer objetivo atrelado ao enredo do jogo – você podia passar horas se divertindo dirigindo carros diferentes, roubando-os, atropelando pedestres, fugindo da polícia ou enfrentando gangues rivais.

E quando quisesse, cansado de espalhar o caos pela cidade, era só contatar determinado personagem para dar seqüência às missões do jogo.

Ao longo de suas diversas encarnações (além do GTA III, foram lançadas mais quatro seqüências), vários aspectos da jogabilidade foram aperfeiçoados e o conteúdo tornou-se cada vez mais "profano" – o estilo de vida criminoso era retratado com uma riqueza cada vez maior de detalhes, gerando uma avalanche de protestos em torno do seu conteúdo violento, sexista, racista, imoral e, apesar de tudo isso (ou até por causa de tudo isso) o jogo se tornava mais e mais popular a cada lançamento.

Os avanços tecnológicos da nova geração de videogames (PS3, X360 e Wii) possibilitaram aos programadores alcançar patamares antes inimagináveis em termos de inteligência artificial e capacidade de processamento, permitindo a criação do verdadeiro sucessor de GTA III e não simplesmente mais uma seqüência, como havia acontecido até então.

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GTA IV

Após quatro anos de desenvolvimento e um orçamento de US$ 100 milhões, foi lançado em maio deste ano o GTA IV. Superando todas as expectativas, o jogo vendeu em uma semana US$ 500 milhões, quebrando todos os recordes de lançamento de qualquer produto de entretenimento. Ou seja, vendeu naquela semana mais do que qualquer livro do Harry Potter ou filme de Star Wars em seus respectivos lançamentos.

Curiosamente, é perceptível o impacto da série na cultura e sua relação com a mesma. Apropriando-se da linguagem cinematográfica para contar suas histórias e ambientar seus mundos, cada título da série faz referência direta a um gênero ou subgênero do cinema ou televisão: enquanto o GTA III original se baseava em filmes de mafiosos, Vice City carregava nas tintas dos policiais dos anos 80 (em especial Miami Vice), enquanto o San Andreas emprestava diversos elementos de filmes de gangues. Já em GTA IV, os produtores do jogo admitiram que, embora mantivesse elementos da mesma linguagem, não fariam nenhuma alusão direta a determinado gênero – GTA já havia se tornado referência cultural. A situação agora se invertia, era Hollywood que negociava os direitos de levar às telonas o mundo de GTA.

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E o que esperar da nova geração de GTA? Que ele apresentasse os elementos consagrados da franquia em versão aditivada, com mais possibilidades criativas de interagir com o mundo virtual (Liberty City, uma homenagem minuciosa a New York) da maneira bem característica da franquia: mais explosões, mais violência, mais sexo, mais profanações!

Por um lado, é isso mesmo. A título de ilustração, se antes você podia contratar os serviços de uma prostituta e a atividade era apenas sugerida pelo balançar de seu carro durante o encontro, em GTA IV, pode-se escolher entre três serviços da profissional, que são representados graficamente, ainda que sem nudez.

Por outro lado, GTA IV surpreende ao incluir uma série de atividades "sociais" e corriqueiras que o protagonista pode realizar, como jogar boliche/dardos/sinuca, fazer as vezes de taxista e de motorista de ambulância, levar uma garota para jantar, conquistar uma namorada, surfar na "internet" (uma versão própria da rede que inclui sites e tudo mais), assistir TV, sair com amigos para beber (e se tentar dirigir depois, verá como é difícil dirigir embriagado), assistir a um show de stand-up comedy, entre outras coisas.

GTA IV aumenta possibilidade de interação entre homem e máquina

Não acredito que os gamers comprem GTA IV por causa destas possibilidades ou que liguem o jogo para jogar um pouco mais "daquele minigame divertidísimo de dardos", mas a percepção aqui é outra. Se antes, movimentar uma barra para acertar uma bolinha (ou quadrado, para ser mais exato), era sinônimo de diversão ao se jogar PONG, a própria experiência de se jogar videogames tornou-se cada vez mais complexa – a cada nova geração de plataformas e de jogadores, vários elementos foram adicionados ou desenvolvidos: as histórias tornaram-se intricadas e emocionantes, a variedade de ações que o jogador pode executar num jogo aumentou vertiginosamente, o refinamento da inteligência artificial aumentou o desafio dos jogos (uma vez que as reações do computador se tornam cada vez mais imprevisíveis) e também possibilitou uma riqueza de possibilidades de interação entre jogador e máquina.

Mas algo se manteve quase intocado, em termos de experiência do jogo, durante toda esta evolução – a objetividade dos jogos e a consciência do recorte da atuação e papel do jogador neles (bem, eu sou um tanque que pode se movimentar neste perímetro X, atirando em naves inimigas, mas também, se me entediar, posso simplesmente andar pela cidade destruindo todos os edifícios à minha volta).

Esta concepção evoluiu com o sucesso de The Sims e Second Life – a experiência agora se tornou mais subjetiva, em que parece mais relevante a imersão cada vez mais profunda nesta realidade virtual do que a conquista de determinado objetivo – o ser virtual se sobrepondo ao fazer.

Neste sentido, GTA IV se lança como uma possível ponte entre os dois mundos (objetivo e subjetivo) – o cerne continua sendo um jogo de ação de ponta, mas se esforça em ser uma experiência de jogo 360º, o tal pacote completo. O jogador que se cansar de matar, matar, matar, não precisa mais trocar de game para jogar algo mais casual ou diferente, basta ir a um bar em Liberty City para jogar sinuca ou ligar para a garota com quem está saindo para ver se ela quer jantar num lugar romântico. A realidade de Matrix está, aparentemente, cada vez mais próxima.