Há um aumento do consumo de álcool na pandemia, indicam estudos

O aumento do consumo de álcool na pandemia ocorre em vários países. Entre uma das consequências está o beber pesado. Veja como lidar com o problema.
 

Durante pandemias e grandes catástrofes naturais, sociais e/ou econômicas, a imensa maioria de nós tende a ser vencida pela ansiedade, tristeza, stress, redução da renda, incertezas, tédio e prejuízo nas habilidades para manejar tais mazelas. E, infelizmente, uma das formas disfuncionais encontradas para driblar os sintomas de ansiedade, tédio, stress e incertezas é o consumo de bebidas alcoólicas.

Aumento do consumo de álcool na pandemia H1N1 em 2003

Por exemplo, na pandemia causada pelo vírus H1N1 em 2003, foi observado um significativo aumento do consumo de bebidas alcoólicas tanto entre os profissionais que trabalhavam na linha de frente no combate à Síndrome da Angústia Respiratória Aguda (SARS), quanto entre os que permaneceram em quarentena na China.

As consequências desse aumento do consumo de bebidas alcoólicas foram percebidas dois a três anos depois, através de um aumento na busca por tratamentos para problemas relacionados com o uso de álcool.

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Aumento do consumo de bebidas alcoólicas após o ataque ao World Trade Center

Similarmente, em Nova York, após os ataques ao World Trade Center em 2001, foi percebido um aumento do consumo de bebidas alcoólicas bem como de problemas decorrentes deste uso naquela cidade meses após.

Aumento do consumo de álcool na atual pandemia

Na atual pandemia pelo SARS-Cov-2, o aumento no consumo de bebidas alcoólicas tem sido registrado em diferentes regiões ao redor do mundo. As consequências desse aumento podem ser previsíveis, levando em consideração as várias repercussões nefastas das catástrofes anteriores que o mundo já viveu, ressalvadas as peculiaridades de cada uma delas.

Em um estudo publicado no mês de dezembro de 2020, envolvendo uma amostra conveniente de 832 adultos americanos com mais de 21 anos de idade, cerca de 60% dos entrevistados reportaram aumento da quantidade de álcool etílico consumido no mês anterior à pesquisa em relação ao mesmo período de 2019 (Grossman et al., 2020).

Outro estudo americano realizado com 1.540 adultos com mais de 30 anos de idade demonstrou que, entre os meses de abril e julho de 2020, a frequência do consumo de bebidas alcoólicas aumentou cerca de 17%, quando comparada à média dos anos anteriores à corrente pandemia (Pollard et al., 2020).

Com a pandemia há um aumento do consumo pesado de álcool

Outrossim, um estudo apontou o aumento de episódios de beber pesado (binge drinking) durante a corrente pandemia, ou seja, cerca de 60 a 70 gramas de álcool etílico em até 02 horas (Weerakoon et al., 2020).

Por que há um aumento do consumo de álcool em períodos de pandemia?

Não somente o medo da morte e da própria infecção induz ansiedade, estresse e incertezas; as políticas de contingência adotadas ao redor do mundo, embora necessárias, provocam danos sociais, pessoais e familiares imensuráveis. Por exemplo, em resposta à pandemia, governos têm limitado a abertura de comércios em geral para evitar a propagação do vírus. Como resultado, os cidadãos trabalhadores especialmente do setor privado, acabam por experimentar perda súbita de salário, desemprego, dificuldade para socialização, aumento do tempo em casa, tédio, raiva e stress.

O medo individual de ser infectado, bem como as políticas de distanciamento ou de isolamento social, também provocam a redução da capacidade dos serviços públicos de atendimento médico e psicossocial, bem como da demanda, prejudicando o tratamento daqueles que já padecem de algum transtorno crônico e que precisam de seguimento estreito.

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Estudo tem já demonstrado que em junho de 2020, cerca de 40% dos americanos já registravam sintomas de depressão, ansiedade e problemas relacionados ao consumo de álcool e de outras substâncias (Czeisler et al., 2020).

Infelizmente, trata-se de mais um momento da história da humanidade em que “a tristeza é mortal”, dadas as consequências de uma pandemia. Ao longo do tempo, a humanidade tem conseguido superar os danos causados por outras pandemias. Entretanto, no momento das crises, a capacidade para driblar os problemas, que ecoam como intermináveis, nunca é plena e todos somos afetados. Dito isso, embora fácil afirmar, devemos estar alerta e não nos descuidar.

Principais causas do aumento do consumo de álcool na pandemia

De uma forma bastante superficial, podemos apontar algumas causas do aumento na frequência e na quantidade do consumo de bebidas alcoólicas durante a corrente pandemia:

a) desemprego;

b) trabalhar em casa, deixando de conseguir estabelecer limites para o empregador (os e-mails chegam a qualquer hora do dia; os trabalhadores perdem a motivação e sentem-se inseguros);

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c) ter que trabalhar na linha de frente;

d) ter que equilibrar o trabalho em casa com as atividades escolares dos filhos;

e) luto;

f) falta de apoio social e emocional;

g) dificuldades para obter gratificação através de atividades sociais e interpessoais, estando sob confinamento ou mesmo seguindo as recomendações de distanciamento social.

É verdade que existe enorme variabilidade dos fatores que facilitam o uso de bebidas alcoólicas como uma forma para driblar as consequências sociais, pessoais, familiares, econômicas… da pandemia.

Fatores que promovem mais intensamente o consumo de álcool

De qualquer forma, podemos apontar alguns fatores que promovem mais intensamente este comportamento de consumo de álcool etílico:

a) ter um preexistente problema com o consumo de bebidas alcoólicas;

b) deixar de seguir o tratamento anteriormente instalado;

c) dificuldades para encontrar formas mais saudáveis para manejar o stress e o tédio.

Alguns autores têm constatado que pais que trabalham e que também devem auxiliar os filhos nas atividades escolares em casa estão em alto risco de perder as suas habilidades para driblar o stress. Entre os outros principais fatores estão, seguramente, o desemprego e a incerteza sobre o que ocorrerá nas próximas semanas.

Como lidar com o consumo abusivo de álcool

Detectar que o consumo de bebidas alcoólicas pode estar sendo prejudicial e procurar auxílio médico, mesmo através de videoconsultas, são importantes ações que todos nós devemos estar fazendo.

Abaixo, aponto alguns sinais de alerta que não deveriam passar despercebidos:

a) estar em casa e mesmo assim sentir que não está presente com seus filhos;

b) esconder garrafas e/ou latas de bebidas;

c) sentir-se cansado, desanimado, desmotivado;

d) acordar com tremores em mãos;

e) brigar com mais frequência;

f) sentir a necessidade de beber já de manhã.

Desde o ano passado, artigos publicados sobre o aumento do consumo de bebidas alcoólicas durante a pandemia têm pululado. A preocupação com o consumo nocivo de álcool nesta época é legítima, dadas as experiências prévias durante situações catastróficas de enorme alcance.

Seguindo os protocolos de segurança contra a infecção pelo SARS-Cov-2, é possível que todos possamos retornar aos nossos tratamentos, iniciar outros e cuidar amplamente da nossa saúde.

O autojulgamento negativo, embora frequente, não será útil sob qualquer aspecto ou pretexto. Identificar os problemas e procurar auxílio médico e psicossocial para driblá-los de maneira funcional devem estar no topo das nossas agendas diárias.

Referências:

Czeisler MÉ, Lane RI, Petrosky E, Wiley JF, Christensen A, Njai R, Weaver M, Robbins R, Facer-Childs ER, Barger LK, et al. (2020). Mental health, substance use, and suicidal ideation during the COVID-19 Pandemic — United States, June 24–30, 2020. Morbidity Mortality Weekly Report. 69:1049–57.

Grossman ER, Benjamin-Neelon SE, Sonnenschein S. (2020). Alcohol consumption during COVID-19 pandemic: A cross-sectional survey of US adults. International Journal of Environmental Research and Public Health. 17: 9189.

Pollard MS, Tucker JS, Green HD. (2020). Changes in adult alcohol use and consequences during COVID-19 pandemic in US. JAMA Network open. 3: e2022942. Weerakoon SM, Jetelina KK, Knell G. (2020). Longer time spent at home during COVID-19 pandemic is associated with binge drinking among US adults. The American Journal of Alcohol and Drug Abuse. DOI: 10.1080/00952990.2020.1832508.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.