por Monica Aiub
No artigo “O que acha de si mesmo?” (clique aqui e leia) apresentei o tópico assim chamado em filosofia clínica (AIUB, 2004), afirmando que observamos as representações que as pessoas constroem sobre si.
Afirmei, ainda, que representações díspares são comuns, nem sempre significando um problema em si mesmas. Contudo, há momentos em que o choque de representações constitui-se como um problema à pessoa. O que fazer?
Ao me referir a choques de representações, quero apontar para contradições, como por exemplo, posso achar que sou forte e, simultaneamente, que sou fraca; posso me achar competente e incompetente ao mesmo tempo; posso achar que quero e que não quero a mesma coisa, no mesmo contexto, no mesmo momento.
Obviamente, tais contradições podem ser apenas aparentes, como, por exemplo, eu ser forte em alguns aspectos e fraca em outros, ser competente para algumas coisas e incompetente para outras, querer alguns elementos de uma coisa e não querer outros elementos da mesma coisa… Enfim, são muitas as possibilidades de aparentes contradições.
Por serem aparentes, muitas vezes pensamos que não se constituem como problema. Contudo, é comum que aparentes contradições sejam lidas, por nós ou pelos outros, como grandes problemas. Afinal, fomos educados, ensinados a pensar a partir de uma lógica clássica que não considera contradições como válidas. Porém, muitas vezes somos contraditórios, tanto em nosso modo de pensar, em nosso discurso, quanto em nossas ações.
Quantas vezes você foi cobrado ou cobrou a si mesmo por pensar de modo contraditório? Quantas vezes percebeu a si mesmo agindo de modo contraditório a seus pensamentos? Quantas vezes afirmou algo e fez o extremo oposto?
É claro que temos o direito de mudar de opinião. A reflexão, a pesquisa, os elementos para que possamos reconsiderar algo, muitas vezes, nos fazem quebrar a palavra dada anteriormente. Pensávamos que as coisas seriam de determinada maneira, mas elas se modificaram, ou nos enganamos no primeiro momento. Ou, simplesmente, as coisas continuam sendo como eram antes, mas nós nos modificamos.
Se considerarmos um universo estático, que não se movimenta, ou que suspende seu movimento enquanto fazemos nossas análises sobre ele, criamos estratégias e as aplicamos em nossas ações, talvez consigamos superar tais dificuldades. Mas não é possível parar o universo. “Tudo se move, nada permanece o mesmo”, como afirmava Heráclito de Éfeso, na Antiguidade. Do movimento molecular ao cultural, ainda que aparentemente sejamos os mesmos, que mantenhamos aquilo que chamamos nossa identidade, muito se transforma.
Nem sempre acompanhamos nossas transformações. É comum que muitas coisas se modifiquem em nós sem que percebamos. Nos vemos em padrões anteriores, quando na verdade eles já se modificaram. Posso dizer: “sou medrosa”, porque em tempos anteriores possuía um medo incontrolável, tendo superado o medo, a representação de ser medrosa continua, sem que eu realmente tenha medo. De repente, num momento inesperado, percebo o quanto tenho enfrentado corajosamente as situações e me questiono: mas eu não era medrosa? Quando isso mudou? O que aconteceu?
Da mesma maneira, posso olhar meu rosto no espelho diariamente e enxergar, ainda, uma menina de 15 anos, embora em muito tenha se modificado o meu rosto em todo o tempo decorrido. Num dia, por um motivo que nem sei qual, olho para o espelho e não vejo o mesmo rosto. Consigo observar marcas do tempo, consigo observar modificações. O que era o mesmo, já não é o mesmo. Posso chegar ao ponto de não me reconhecer. Mas posso reconhecer o mesmo no diferente.
Quem sou? O que, após tantas modificações em todos os aspectos, faz com que eu possa afirmar-me eu? O que determina aquilo que chamo de minha identidade pessoal?
António Damásio, no livro “E o cérebro criou o homem”, aborda a ideia de um self autobiográfico, ou em suas palavras, uma autobiografia que se tornou consciente. Afirma ele: “Enquanto o self central pulsa incessantemente, sempre ‘online’, variando de sinal vagamente pressentindo a presença marcante, o self autobiográfico leva uma vida dupla”.
Poderíamos pensar, aqui, nos vários eus que nos constituem, talvez haja um eu central, como ele afirma, talvez não, como postula Daniel Dennett em “Consciousness explained”. Segundo Dennett, não temos o eu que dirige o “teatro cartesiano”, ou seja, uma consciência que tem controle total sobre o que ocorre em nós, de modo linear e causal. Temos, segundo ele, várias versões, criadas em nossa mente, que reconstroem os estímulos recebidos. Algumas dessas versões permanecem, outras não.
As narrativas construídas por nosso cérebro, na compreensão de Dennett, podem ser coerentes ou fragmentárias. No segundo caso, nossas contradições estariam explicadas. Se não há um eu central que coordene todas as versões ou fragmentos, há apenas um “centro de gravidade”, uma construção teórica.
Memórias são ficção
O neurocientista Jonah Lehrer, no livro “Proust foi um neurocientista”, afirma: “nossas memórias não são como a ficção. Elas são ficção”. Ele cita as pesquisas do Dr. Kausik Si, que encontrou a “marca sináptica” da memória, os príons. Moléculas instáveis, imprevisíveis, que se ativam e modificam com a liberação de alguns neurotransmissores, tais como serotonina e dopamina. Defendendo que Proust antecipou as descobertas da neurociência em sua obra “Em busca do tempo perdido”, Lehrer afirma: “… os príons são, por definição, imprevisíveis e instáveis, porque a memória não obedece a nada, a não ser a si mesma. Era isso que Proust sabia: o passado nunca é passado. Enquanto estivermos vivos, nossas memórias permanecem maravilhosamente voláteis. No espelho mercurial delas, vemos a nós mesmos.” (2010: 147).
Se Leher estiver certo, o que achamos de nós mesmos, que tem por base nossa historicidade, nossa memória, modifica-se tanto quanto nos modificamos, ou seja, é muito mais volátil do que a estabilidade que habitualmente cobramos de nós mesmos e dos outros. Somos, então, contraditórios ou estamos em constante movimento? Precisamos lembrar de algumas coisas ou podemos reinventá-las cotidianamente? Nossa memória é um retrato do vivido ou uma reinvenção constante daquilo que somos?
Estas e outras instigantes questões carregam consigo as reflexões sobre identidade, sobre quem somos e, principalmente, sobre como conduzimos nossa existência.
Diante de tais questões, o que você acha de si mesmo?
Qual o peso daquilo que você acha de si mesmo para seus posicionamentos na vida, para suas relações com o outro, com o mundo?
É possível pensar em uma identidade pessoal?
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
DAMÁSIO, A. E o cérebro criou o homem. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
DENNETT, D. Consciousness Explained. Boston: Little, Brown e Cia, 1991.
LEHER, J. Proust foi um neurocientista. Rio de Janeiro: BestSeller, 2010.
TEIXEIRA, J. F. A mente segundo Dennett. São Paulo: Perspectiva, 2008.