por Monica Aiub
Lendo o texto de Donaldo Schüler, Heráclito e seu (dis)curso, deparei-me com o sentido etimológico de idiota:
“Idiota é quem não sai de si. Age como se nada lhe fosse dado, como se os outros só existissem para servi-lo, como se viesse dele tudo o que ele é”.
De fato, em seu sentido originário, grego, idiota era aquele que não se interessava pelos assuntos da polis, preferindo ocupar-se consigo próprio (idio significa próprio). Nesse sentido, você é idiota? Talvez, de alguma forma, todos nós pudéssemos responder que sim, pois nos ocupamos com questões particulares, nos ocupamos conosco boa parte de nosso tempo. Na maioria das vezes nos preocupamos muito mais conosco do que com o outro ou com questões comuns ao todo social.
Contudo, habitualmente, hoje, utilizamos a palavra idiota para alguém “estúpido, ignorante, imbecil, tolo, incapaz de coordenar as ideias”, conforme as acepções constantes em alguns dicionários. Seriam tais significados sinônimos ao sentido etimológico? Teriam, ao menos, alguma proximidade?
Na sequência de seu texto, Schüler afirma: “O idiota consome. Consomem-se objetos de consumo. O idiota também consome pessoas, mas só depois de as ter transformado em objetos, seja na vida amorosa, comercial, industrial ou política. (…) O homem deixa de ser idiota quando sai de si e constata que há coisas que não dependem dele, que há outros eus com direitos iguais aos dele, que ele não existe só, que ele se faz com eles”, chamando-nos à reflexão que o idiota não faz, convocando-nos a perceber que coexistimos e, portanto, o mundo não é submisso a nossos desejos.
Considerando tratar-se de uma leitura do pensamento de Heráclito (filósofo pré-socrático), Schüler, em seu comentário, ao mesmo tempo em que aponta para essa tendência a considerar o mundo a partir de si, a ocupar-se consigo mesmo – já presente desde os primórdios, provoca nosso olhar para a sociedade contemporânea, tantas vezes idiotizada em seu crescente egoísmo, em sua ausência de alteridade. Nesse movimento, associa a idiotice ao solipsismo, ao fechar-se em si mesmo, ao isolamento.
O ensimesmado
O ensimesmado (fechado em si mesmo) é incapaz de enxergar o outro, exceto quando o objetifica, quando o vê como objeto de consumo que possa trazer benefícios a si mesmo. Não há, nesse estado, um movimento em direção ao outro, não há atenção ao outro. Não se vê, não se ouve, não se percebe nada além de si mesmo. Segundo Schüler, para Heráclito, “Só decisões voluntárias tiram da solidão”. O fechar-se em si mesmo gera a solidão que corta o fluxo do movimento da vida, é contrário à natureza.
Fechado em si mesmo, o idiota não se movimenta, não sai do lugar, não amplia suas experiências. Ele se basta, e somente enxerga o outro na medida em que pode servir-se dele. Uma vez que não sirva, o outro pode ser descartado sem problemas, sem culpas, sem consequências. Não interessa o que tal descarte provocará, muito menos o impacto disso sobre os demais membros de sua sociedade. O que lhe interessa são suas próprias necessidades, atender e servir seus desejos. Não seria ele “estúpido, ignorante, imbecil, tolo, incapaz de coordenar as ideias”?
Diferente do ensimesmado é aquele que busca a solidão como recolhimento que favorece a vida, provocando a reflexão e a opção responsável de aproximação ao outro para o benefício da polis, e não apenas de si mesmo. “Entenda-se o papel da natureza. Ela fundamenta as aproximações sem determinar que eleições deverão ser feitas. Filia requer nas relações humanas opções responsáveis” (Schüler, 2001: 54).
É preciso um movimento de olhar para si mesmo, de conhecer-se para situar-se no mundo, para agir responsavelmente.
“A todos os homens é compartilhado o conhecer-se a si mesmos e pensar sensatamente” (Heráclito). O conhecimento de si, do outro e do universo nos permite pensar e agir sensatamente. Porém, não nos é dado o conhecimento de todas as coisas, muito menos um conhecimento que baste para orientar toda e qualquer ação. É preciso que o conhecimento acompanhe o fluxo da vida, o movimento do universo, o devir (vir a ser), o atualizar das possibilidades.
Interessante pensar, como nos aponta Schüler, que a natureza não determina a forma como estabelecemos nossas relações, nem com quem vamos nos relacionar. Esta é, segundo ele, uma escolha, uma decisão pela qual somos totalmente responsáveis. Além disso, tal escolha não é estática. Ela acompanha o movimento da vida, nossas constantes transformações, nosso ser em devir.
Se podemos escolher com quem e como nos relacionamos, por que optamos, tantas vezes, pelo isolamento?
Se é nossa escolha a forma como estabelecemos nossas relações, por que aceitamos, tantas vezes, relações idiotizadas?
Por que nos permitimos objetificar o outro, nos tornando idiotas?
Por que permitimos que o outro nos consuma, nos objetifique, e nos isolamos na tristeza de nosso desencantamento com a idiotice vigente em nossa sociedade?
Se há uma sociedade de idiotas é porque cada um de nós se faz ou se permite ser idiota.
Retornando a Heráclito, é preciso relembrar que ele compreendia o ser humano e o universo em constante devir, vir a ser. O ser-não-ser, sendo e não sendo ao mesmo tempo, tornando-se e deixando de ser; sem uma concepção de progresso ou de evolução, mas um constante fluxo.
Objetificamos o outro e a nós mesmos quando paramos o fluxo da vida, quando achamos que já somos algo. Ficamos estagnados, sem movimento, ensimesmados, idiotizados. Observe a consequência de tal movimento em grandes parcelas do todo social. Imagine uma sociedade que considera que já é tudo o que poderia ser. Não há possibilidade de movimento. O fluxo da vida foi cortado, represado, retido.
Há pessoas que procuram o consultório de filosofia clínica por não verem sentido na vida idiotizada, ensimesmada. Não se contentam em viver como idiotas, mas também temem uma movimentação em direção ao outro. Afinal, se todos são idiotas, como é possível estabelecer relações? Como é possível constatar que o universo não foi criado para nos servir, sem que o idiota nos torne seu servo?
Se se trata de uma escolha, uma opção responsável, uma decisão, é possível deixar de ser idiota saindo de si mesmo, interessando-se pelo outro, sendo capaz de ouvir, mas também sendo capaz de falar, de se colocar; não permitindo ser objetificado pelo outro, nem o objetificando. Impossível? Não. Basta sair de si mesmo e acompanhar o fluxo da vida. Como fica a estabilidade? Como fica a imposição e a manutenção do ser si mesmo? Ai está a dificuldade: fica aberta às possibilidades geradas pelas relações, pelos encontros e desencontros que o fluxo da vida nos traz, pelas partilhas que nos permitimos, pelo inusitado de nossos próprios movimentos. Quais são os seus movimentos?
Referências Bibliográficas:
HERÁCLITO. Fragmentos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.