por Roberto Goldkorn
O sujeito odiava doce de leite! Já estava entrando na casa dos oitenta e nem se lembrava mais como começou essa ojeriza ao doce. Gabava-se de comer de tudo, de quiabo, a jiló, mas morreria se tivesse de comer doce de leite.
Um dia foi convidado a uma festa de aniversário de uma velha amiga, uma das raras pessoas por quem nutria um carinho especial. Ela estava comemorando 90 anos! Na festa lúcida e ativa ela chegou com um pratinho cheio de copinhos para oferecer a ele. Nos copinhos havia uma iguaria ímpar, feita por ela mesma, com todo carinho e competência. Ao chegar com sorrisos a frente do seu velho amigo, nem reparou como ele empalideceu e seu sorriso ficou amarelo: doce de leite! Era o fim. Ele não podia se imaginar recusando, e correndo o risco de magoar a anfitriã, mas… Bem se tivesse de morrer que fosse ali, afinal oitenta anos também já é uma boa idade, quantos mais restariam?
Preparou-se para provar o doce como quem ajeita a corda no pescoço. Ela o observava com atenção esperando a prova e o comentário de “está ótimo, muito bom mesmo”. Ele lentamente leva a colher de plástico à boca com a diminuta porção. Não sabia bem o que esperar, um choque anafilático talvez. Mas o “veneno” chegou-lhe à boca, e logo na língua que mandou as devidas mensagens ao cérebro, que por sua vez deu o veredito: Bom, muito bom, gostoso, delicioso! Chocado e com as pernas ligeiramente trêmulas, ele mergulhou a colher no potinho para se certificar que não estava louco. Bom, muito bom, delicioso, sem dúvida. Feliz com a sua obra a velha dama se afastou sorrindo em busca de outro elogio. Ele ficou ali, com a sua tão antiga e cuidada “falseza” derribada, estraçalhada e aquele gostinho doce maravilhoso na boca e na memória. Uma lágrima escorreu pela face. E agora? Quanto tempo perdido, quanto mais restaria para que pudesse aproveitar a maravilha do doce de leite?
Falsezas: as falsas certezas
Falsezas são falsas certezas, mas que nos enquadram, colocam nosso pensamento e ações (e até emoções) em trilhos tão rígidos que até parecem reais. Falsezas são essas “mentiras” que contamos para nós mesmos e que aceitamos como verdades até que um dia num duelo ao pôr-do-sol com a realidade, são baleadas e seu corpo antes tão sólido se desfaz como entidade alienígena. Agora escrevo ao computador como se tivesse feito isso desde criancinha. Mas minha memória não me permite esquecer o quanto relutei em começar a escrever nessa “geringonça”. Simplesmente não entrava na minha cabeça como as ideias que fluíam diretamente para a ponta dos meus dedos e movia a caneta poderia fazer o mesmo nas teclas de um PC. Caneta e papel e eventualmente uma velha Olivetti Lettera eram coisas naturais, o computador sabe se lá que mente maligna o inventou. Hoje não consigo compreender o meu dia a dia sem ele, talvez isso seja outra falseza, por isso não coloco na gaveta das certezas.
Muitas de nossas expectativas podem ser ilusórias
Lembro-me também dos anos que passei imaginando-me fazendo hipismo, montado num belo cavalo branco ou preto, e saltando obstáculos cheio de pose, como se estivesse num filme. Mas imagine, isso é esporte de rico, dificilmente eu poderia… e fui cozinhando em banho-maria a minha frustração. Um dia fiquei sócio de um clube hípico. Descobri que poderia praticar salto sem comprar um cavalo e mesmo que resolvesse ser proprietário de um animal, não era tão caro como imaginava. Cheio de excitação comprei o equipamento, e a cada item adquirido as minhas fantasias ficavam mais vívidas. Mal consegui dormir a noite anterior à primeira aula, minha estréia triunfal nas pistas. Resumindo, foi uma decepção. Minhas costas doíam com aquele saltinho sem graça, repetido por minutos que pareciam séculos. O cheiro de bosta , o sol de rachar na cabeça com aquele capacete apertado, e nada de salto, nada de glamour em tela grande. Essa tortura durou dois meses e pouco até que finalmente a minha falseza não resistiu à realidade, ou a essa leitura da realidade.
Muitos dos meus clientes, amigos, parentes desfilam diante de mim as suas falsezas e as defendem com obstinação, como se fosse um território a ser protegido dos invasores. Eu faço o meu trabalho destruidor mas consciente: o que eu vejo não é o mesmo que eles veem. Por isso pego leve e tento compreender. Sei que muitos já sabem que as suas falsezas são assim umas falsas, mas temem o depois. Lidar com o day after duelo, ter de decidir o que fazer com o cadáver da falseza jazendo ali dentro de si, não é fácil, hay que tener cojones! Mas, principalmente, é uma missão das mais sofridas o processamento desse passado onde a falseza era apenas mais uma certeza, inabalável e concreta. Nesse momento de acerto de contas muitas perguntas cobranças assaltam a mente. Quem era essa pessoa que acreditava piamente naquilo? Como eu pude ser tão “cego”? Por que não questionei, não fui mais fundo na análise crítica disso? Por que não ouvi fulano quando tentou me alertar e eu simplesmente o desprezei? Por raios não provei antes o tal do doce de leite?
As crianças e adolescentes cultivam falsezas de forma sistemática e costumam sofrer mais por elas do que por ofensas reais. Quantos de nós já não sofremos dores agudas por termos a suspeita ou a certeza de sermos filhos adotivos? Quantos filhos constroem fantasias absurdas em relação aos seus pais, e padecem mais que a mãe do porco-espinho, só para descobrirem muitos anos depois que tudo não passava de falseza? Quanto sofrimento em vão. O pior é que às vezes quando chega a vez da realidade não há espaço para ela, e a rejeitamos como se esta sim fosse ficcional. Assim, se pensarmos bem, a criação e acolhimento das falsezas e as torturas internas que causam, são um efeito da infantilização a que estamos submetidos por imaturidade emocional.
Os hindus dizem que vivemos num universo do maya, a grande ilusão. Jung falava de “transe cultural” uma espécie de torpor alucinógeno onde navegamos e achamos que estamos em terra firme. A grande lição que levo das falsezas é que não podemos, não devemos nos apegar a nada, nem ao carro importado, nem às certezas, nem às pessoas, pois como dizia a minha mãe: “ninguém é de ninguém, na vida tudo passa.” É uma mistura de apego, e ilusão, que junto com o medo pode construir e manter as falsezas na nossa vida. Se coubesse aqui alguma dica, se fosse possível passar alguma experiência eu diria: coloque as suas certezas em teste, e se forem falsezas vão ser desmascaradas. O que vem depois junto com todo esse questionamento, é um grande alívio, é como se fizéssemos um super-regime e perdêssemos 50 quilos! A vida fica mais leve, mais verdadeira, e damos um largo passo em direção a tão desejada liberdade.