Por Luís César Ebraico
Eu e mais três amigos, jantando. Embora o clima da conversa estivesse mais para o jocoso, Carlos – evidente que todos os nomes aqui, menos o meu, são fictícios – puxou a conversa para um tom mais sério, começando a falar sobre problemas pessoais, mormente relativos a sua vida sexual e a seu casamento.
CARLOS (casado já há 15 anos): — Uma das coisas que vêm me aborrecendo é que tenho cada vez mais perdido o tesão por minha mulher…
LUÍS CÉSAR: — Há quanto tempo isso vem acontecendo?
CARLOS: — De uns cinco anos para cá, mas neste último ano, a coisa piorou mesmo.
ANDRÉ: — Caramba, cara, eu também já passei por isso! Não é mole, não. Principalmente, quando você gosta da sua mulher…
MAURÍCIO (um gosador incurável): — Que é isso, Carlos?! Não estou entendendo! Você, com sua experiência de executivo, não saber qual a solução correta para um problema como esse!
CARLOS: — E que diabos de solução é essa?
ANDRÉ: — Eu também não sei que solução é essa!
LUÍS CÉSAR: — Nem eu!
MAURÍCIO: — Ué, terceiriza!!!
Como se sabe, existe “terceirização”, quando uma empresa, com o objetivo de otimizar o exercício de determinadas atividades, transfere para outra(s) pessoa(s) física(s) ou jurídica(s) atividades antes por ela própria desempenhadas. Embora durante o jantar, a pândega de se propor que Carlos “terceirizasse” o “setor sexual” de sua função de marido tenha recolocado nosso papo no trilho da gaiatice, eu, chegando a casa, fui assomado por uma série de reflexões bastante sérias provocadas pelo diálogo acima e relativas ao conceito de individualidade.
Ora, “indivíduo”, ipsis litteris, significa “não passível de ser dividido”. Mas será mesmo, que o “indivíduo” não é divisível? Ele é uma espécie de “átomo existencial”, é “um”? Mas, se ele é um, por que ao organizar as pastas de nossos arquivos, rotulamos uma delas de “documentos de terceiros”? Por que há outra pasta com o rótulo de “documentos de segundos”? Não, não há. E quando uma empresa “terceiriza”, é porque ela já tinha “secundarizado”? Também não. Mistério! Essas divagações levaram-me espontaneamente a outras. Primeira: Por que, quando pretendo que um indivíduo se caracterize de forma que eu possa DIFERENCIÁ-LO dos demais, eu não peço que ele se “DIFERENCIE”, mas sim, que se “IDENTIFIQUE”? Segunda: se uma pessoa é indivisível, una, como ela pode “cair em si”: o “si” já não era o “ela”? E como pode estar “fora de si”: como “ela” pode estar “fora dela”?
Sou tentado a concluir que todos nós sabemos – embora nem sempre saibamos que sabemos – uma série de coisas. Primeiro: que somos dois – o “minzão” e o “minzinho” – podendo esses dois serem graficamente representados por um círculo menor – o “minzinho” – dentro de outro maior – o “minzão” (círculos que, no jargão psicanalítico, mereceriam ser respectivamente chamados de “o eu” e “o isso”). Segundo: que, quando meu comportamento é comandado pela área pertencente apenas ao círculo maior, estou “fora de mim” e quando ele volta a ser comandado pela parte da figura que pertence simultaneamente aos dois círculos, eu “caí em mim”.
Ora, se sei, ainda que obscuramente, que sou dois, nada mais razoável que os documentos dos outros sejam, não “de segundos”, mas “de terceiros”. Por outro lado, se apenas na área do “minzinho” as áreas dos dois círculos são IDÊNTICAS, nada mais razoável que, só quando essa área está operando, eu tenha sensação de IDENTIDADE e sinta que estou “em mim”. De passagem, é a interação recíproca dos conhecimentos próprios a cada um desses dois setores de nosso psiquismo que merece o nome de “co-ciência”, conhecida mais comumente em nosso léxico sob o nome de “consciência”. Mas isso é papo para outra hora…