Injustiça de gênero: o valor de um gol

Recentemente me deparei com uma publicação que comparava o valor de um gol de Neymar com um de Marta, ambos convertidos quando esses atletas jogam pela Seleção Brasileira de Futebol. Os gols de Marta eram em maior quantidade, mas valiam menos que os de Neymar. Para se chegar ao preço de cada gol era utilizado o salário de cada um, de tal forma que se obtinha o valor de cada gol convertido por esses dois atletas.

O propósito da comparação era chamar a atenção para a diferença de tratamento entre homens e mulheres. Ninguém pode negar que essa diferença existe e é gritante. A cobertura da mídia para eventos de futebol masculino é infinitamente maior que a quase nula atenção ao futebol feminino. “Infinitamente maior” não descreve bem a inexistência de cobertura com relação ao futebol feminino. Na verdade, a diferença é um pouco maior que “infinitamente maior”.

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De onde vem essa injustiça gritante?

Porém, me chama a atenção que o argumento utilizado para se destacar uma injustiça de gênero seja o valor de gestos humanos – no caso os gols de cada atleta. De uma forma muito sutil, a injustiça de gênero toma feição em função de um desbalanceamento de preços ou de uma desproporção entre atos humanos. Afinal, os atos de um homem valem muito mais do que atos semelhantes de uma mulher – os gols de Neymar são mais bem pagos que os de Marta.

A diferença é facilmente perceptível. Porém, essa diferença gritante faz sentido na medida em que estabelecemos um mesmo patamar de valor para atos diferentes. Se não há nenhuma razão para a diferença de preço entre os gols de Marta e Neymar é justamente porque ambos recebem um preço. É justamente esse valor recebido pelos atletas para cada gol convertido que torna possível destacar a diferença. Supomos, de uma maneira implícita, que em um mundo justo os gols de Marta deveriam valer tanto quanto os de Neymar. O argumento parece razoável. Só parece.

Dúvida

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Uma dúvida surge imediatamente: se um gol de Neymar vale o mesmo que um gol de Marta, então cada um deles deveria valer o mesmo que o de Coité que joga pelo XV de Novembro da cidade de Caroba? A dúvida faz sentido porque um gol de Coité também é um gesto humano e não parece haver nenhum motivo para que ele valha menos que o de Neymar. Imagino também que ninguém estaria disposto a alegar uma diferença de categoria existente entre Marta e Coité. Isso simplesmente porque categoria não é uma qualidade facilmente detectável e nem Neymar nem Marta a tiveram sempre – se é que eles a têm.

A eliminação da diferença entre os gestos futebolísticos de Marta e Neymar, a reivindicação por justiça e por igualdade, tende a levar outras coisas à sua volta na passagem. Uma delas é a diferença entre gestos humanos, pura e simplesmente. Porque um dia de trabalho de um lavrador vale menos do que um dia de trabalho de um professor universitário ou o de um médico? Porque um gari ganha menos que um deputado ou que um juiz? A questão aqui é justamente a eliminação das diferenças entre atos humanos em função de serem eles todos realizados por seres humanos, não importa se são semelhantes ou não.



Justiça plena eliminaria o futebol 

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O problema é que a justiça plena não é possível. Ela simplesmente eliminaria o futebol – para ficarmos nesse mesmo campo de atividades. Se um gol valesse tanto quanto um lateral ou um drible, então o jogo não poderia visar o gol – que é, entre todos os gestos possíveis em campo, aquele que fornece uma vantagem a um dos times. Não estou aqui defendendo que o gol de Neymar vale mais que o de Marta – e nem o contrário. Estou afirmando que ou assumimos que os gestos humanos são diferentes ou simplesmente a vida em sociedade se tornará impossível. Quando cada gesto valer tanto quanto qualquer outro, então o carinho, a atenção ou o amor valeram tanto quanto o descaso, a desatenção e o ódio.

Cálculos sobre o que vale mais e o que vale menos integram o sistema de escravidão

O que parece promissor não é fazer contas de preços e valores para igualar atos humanos. O que parece interessante é conseguir que as pessoas vivam bem sendo diferentes, fazendo coisas diferentes, construindo vidas alternativas. Os cálculos sobre o que vale mais e o que vale menos ainda são parte do sistema de escravidão em que vivemos – mesmo que a escravidão seja bem remunerada, o que parece um detalhe secundário. Nesse sentido, Marta, Neymar e Coité ainda tem muito com que se preocupar.