Jung: você carrega uma sombra

A origem da palavra gentileza nos apresenta aspectos muito interessantes. Ela deriva do latim “gentilis” que quer dizer: da mesma família ou clã; de gens ou “grupo de famílias definido no início da formação de Roma”. Tem também em sua composição o vocábulo “gen” que vem do grego “genós” – raça, origem, nascimento. Vem também daí o nome “gene” para falar da unidade básica da informação hereditária.  

Exercer a gentileza, ou simplesmente ser gentil, então, pressupõe o reconhecimento do outro como pertencente à mesma família que eu e também à noção de que há algo básico e comum entre mim e os que me cercam. E quem é esse diferente de mim, mas pertencente ao mesmo grupo? E, onde estarão os aspectos que são meus, que, no entanto, não reconheço como tal e projeto, por assim dizer, no outro ou no estrangeiro, no que não é de meu clã?

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Você carrega uma sombra  

Jung diz: “Todo mundo carrega uma sombra, e quanto menos ela está incorporada na vida consciente do indivíduo, mais negra e densa ela é.” Sombra é tudo aquilo que não reconheço como meu, meu lado obscuro, a outra pessoa dentro de mim. Ora, tudo que existe “emite” uma sombra ou ainda “não haveria luz se não fosse a escuridão.” (Lulu Santos). A sombra traz a corporeidade, dimensionalidade, peso e profundidade. É possível reconhecer o escuro e o desconhecido em mim e/ou como lidar com ele? Propõe o poeta Fernando Pessoa: “Para ser grande, sê inteiro, nada teu exagera ou exclui…”

Mas, para que possamos ser inteiros e nos relacionarmos de forma completa com os que nos cercam, é preciso incluir os aspectos menos desejáveis, mais difíceis ou mais densos de nossas personalidades. Uma das formas de reconhecer estes aspectos é através da percepção das manifestações fortes e, em geral irracionais, que surgem na relação com o outro.

Como identificar sua sombra?

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Todas às vezes em que nos depararmos com afetos exagerados, atuações autônomas e inconscientes, é provável que estejamos em contato com conteúdos da sombra que desconhecemos. Daí a importância da relação com o outro, com o diferente, com o outro clã, a outra família; através deste contato podemos perceber aquilo que nos incomoda, que nos toca de forma profunda e, com um tanto de humildade, perceber que também nos pertence. Ou ainda, que é nosso também.

E, então, que tal experimentar esse movimento com gentileza?


Que tal acolher o diferente em mim como parte desconhecida, mas ainda familiar, por assim, dizer. Que tal abrir espaço, de forma gentil, para perceber que o que nos incomoda, o que é difícil de lidar, de “engolir” é também “eu”? Se puder acolher o difícil, desconhecido e nebuloso em mim poderei, também, de forma mais delicada, me relacionar o outro ser humano, que é diferente de mim, mas é ainda humano, ou seja, da mesma família.

Aceite o outro em você  

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Se puder aceitar o outro dentro de mim, talvez seja mais fácil estar com o outro fora. O momento atual pede gentileza. Isolados e acuados, estamos todos com medo. Não sabemos o que será, como a vida seguirá, o que acontecerá, qual será o “novo normal”? São muitas as incertezas e, entre as poucas certezas, sabemos que o mundo todo está passando pelas mesmas questões. E os sofrimentos, dificuldades e conflitos embora únicos e pessoais, são ao mesmo tempo iguais porque atingem a inteira humanidade. Não há eu ou outro, fora ou dentro, estamos todos vivendo a pandemia, cada um a seu modo no planeta terra, que abriga nosso clã.

Cuidado com o semelhante, mas também comigo. Gentileza não é exercida apenas na relação com o outro, mas, antes de mais nada, na relação com nós mesmos. Apenas desta forma poderemos ser inteiros, únicos, individuais e apenas humanos, ao mesmo tempo.