por Elisandra Vilella G. Sé
A memória foi por muito tempo considerada um depósito, um arquivo, um tipo de biblioteca, uma realidade acessível para que os conteúdos fossem recordados. Na verdade a memória está associada a um conjunto de funções psíquicas. Ela é um fenômeno em constante mudança em que esquecimento, lembranças, recordações, amnésia, lapsos fazem parte da vida e de preocupações advindas de práticas sociais e culturais.
Com o passar dos séculos, os auxílios à memória forneceram os termos e os conceitos com os quais raciocinamos sobre nossa própria memória.
Com o aparecimento da escrita houve uma profunda transformação da memória coletiva. A escrita permitiu à memória coletiva um duplo progresso. Primeiro, seria o ato de comemorar, que significa tornar os acontecimentos memoráveis, ou seja, imortalizar os seus "feitos" através das representações figuradas. A comemoração é a perpetuação de uma memória, significa perpetuar uma lembrança. E segundo o documento, o arquivo, que é uma forma de memória escrita, refere-se ao armazenamento de informações, que nos permite recordar, reexaminar e reordenar conteúdos. Todo documento tem em si um caráter de monumento.
A evolução da memória ligada à difusão da escrita depende essencialmente da evolução social e cultural. Assim, a memória é uma construção ativa de conhecimentos e experiências e não um mero registro passivo de informações e acontecimentos. E as lembranças nos ajudam a atualizarmos o que foi memorável. Por isso que rememorar é dar vida ao que foi vivido. Nós damos vitalidade aos fatos e eventos conforme sua relevância. A "essência" das coisas é aquilo que garante sua permanência. E o esquecimento é uma força de ocultação e encobrimento. Aquilo que não se percebe, não está presente, está oculto, no senso do esquecimento.
Além da função de armazenamento de conhecimentos, de fatos e eventos, a memória também é responsável por outras funções que envolvem fatores psicológicos que são as reminiscências, a revisão de vida, a história oral, as autobiografias, narrativas pessoais e manutenção da cultura e identidade individual e coletiva. Esses fatores significam lembrar de eventos históricos individuais e de uma sociedade. Assim temos as chamadas memórias, esse termo é utilizado para recuperar dados da experiência passada individual ou coletiva e são referenciados por crenças e valores culturais.
A acumulação de elementos na memória faz parte da vida cotidiana. Através das práticas sociais, culturais, simbólicas e históricas é que as pessoas se tornam pessoas. Nossas experiências com o mundo real, nosso contato com ele, nossa interação social permite nossa construção intersubjetiva. Subjetividade significa uma permanente constituição do sujeito pelo reconhecimento do outro. Então fala-se de intersubjetividade quando um interlocutor, uma pessoa, tem consciência da existência do outro e focaliza em conjunto com o outro, um mesmo fato, evento ou situação.
Por isso é que somos heterogêneos na nossa constituição. Nossas experiências são estabilizadas na memória episódica (de fatos e eventos), em forma de modelos culturais, quadros mentais, esquemas e scripts mentais, que estão sempre prontos para atender às necessidades comunicativas e de resolução de problemas. Cultura é conhecimento distribuído. A filosofia existe mais para guiar e conduzir reflexões do que para responder perguntas. A maneira como pensamos sobre as coisas, é a maneira como vivemos. As divergências não estão nos livros, estão nas pessoas.
As reminiscências são a recuperação de eventos passados, a lembrança de algo que ocorreu no passado. Já a revisão de vida envolve a reconstrução do passado mais a interpretação e análise de conteúdos que são reconstruídos. A lembrança é intencional, existe um envolvimento ativo da pessoa que está revisando a vida, há uma necessidade interna de autoconhecimento por parte do indivíduo. A revisão de vida tem uma função evolutiva em busca do equilíbrio psicológico. Significa recontextualizar os significados das experiências pessoais passadas e reconstruir esses significados.
A história oral é um método que consiste construir conhecimentos que pode ser utilizado por diferentes disciplinas. Na história oral os relatos de recordações são de fatos e eventos históricos e sociais. Tem função transmissiva e informativa com pontos de vistas pessoais sobre princípios e valores de uma época. A história oral leva os idosos a desempenharem papéis de testemunhos do passado. Segundo Olga von Simson, socióloga e pesquisadora do centro de memória da Unicamp, a história oral é a arte de recriar o passado.
Autobiografia significa o resgate de experiências pessoais ou profissionais. São memórias que podem abranger desde o crescimento ao amadurecimento com grandes temas sobre as fases da vida que são organizadas para compartilhar com um grupo. O acúmulo de experiências e de informações permite aos idosos alcançar elevado grau de especialização e domínio em vários campos das atividades humanas.
As narrativas pessoais referem-se à contagem de histórias por iniciativa do narrador ou por necessidade do interlocutor. Significa transmitir informações diversas, que podem ser contadas e recontadas e são estruturadas e moldadas. Cabem às narrativas pessoais relatos de marcos importantes da história de vida do narrador e tem como referência períodos históricos e sociais vivenciado por um grupo. Exemplo: Pessoas que vivenciaram um atentado terrorista e narram suas experiências durante esse acontecimento.
Existem funções psicológicas, sociais e culturais que se evidenciam nas memórias. São cinco as freqüentemente descritas:
Funções integrativas: tem o objetivo de construir o senso de integridade do ego, senso de significado pessoal, recordação de experiências que fizerem bem, envolve o saber lidar com perdas e a aceitação do passado sem arrependimentos.
Funções instrumentais: referem-se às lembranças de planos e de atividades com objetivos estruturados com o aproveitamento de experiências passadas para resolução de problemas atuais. É relembrar estratégias do passado para enfrentar desafios no presente.
Funções transmissivas: envolve as narrativas pessoais e a história.
Funções escapistas: incluem lembranças de cunho adaptativo, refere-se a dificuldade em reconstruir, reinterpretar e aceitar o passado, funcionam como mecanismos de defesa ou estratégias de enfrentamento de dificuldades atuais ou do passado.
Funções obsessivas: correspondem na excessiva reconstrução do passado em detrimento do presente e do futuro, geralmente acompanhados de sentimentos de culpa, vergonha, desapontamentos e ressentimentos.
Existem ainda outras sete funções das memórias na vida dos idosos
1-) Transmissão da herança cultural;
2-) Melhora da autoestima;
3-) Cumprimento de papéis sociais e de tarefas etárias, como por exemplo, de conselheiro e mentor;
4-) Aumento das oportunidades de contato, integração e reconhecimento social;
5-) Diminuição da ansiedade, culpa, vergonha, ressentimento e outros sentimentos negativos;
6-) Melhora no autoconhecimento e na auto-avaliação;
7-) Perspectiva de futuro e consciência da finitude – fim da vida.
Por fim, podemos dizer que o conhecimento é sempre uma modificação de conhecimentos anteriores. Conhecimentos são experiências guardadas na memória. Constantemente lembramos dos nossos scripts mentais. Estamos sempre invadindo esse tempo vivido. Lembrar é um processo de várias modalidades e é muito importante num mundo que está em constante mudança. E o esquecer não é o primo pobre do lembrar, não é fragilidade da memória, mas um processo de reelaboração imaginativa, isto é um labirinto de imagens que se projetam e estão em constante mutação, que ora recordações ocultas vêm à tona, ora ficam escondidas como se estivessem nas profundezas do mar. O esquecimento às vezes também ajuda a diminuir o peso do passado. Quando lembramos de coisas do passado deixamos outras menos iluminadas. Então o esquecimento faz parte da lembrança.
A imaginação tem um papel fundamental na reconstrução da memória. A experiência não importa tanto, ou seja, o que aconteceu no passado, mas sim como o futuro poderá ser reconstruído a partir do passado. A vida não é uma questão de tempo e relógio, o que importa é que por meio das funções psicológicas e sociais da memória, trajetórias alternativas de vida podem ser realizadas e refeitas. Valores são reconstruídos num presente. Estamos sempre preenchendo lacunas com o esforço da imaginação em busca de significados. Não existe o que está esquecido, haverá oportunidade de lembrar em outro contexto, em outro momento de outra forma, porque os restantes dos significados estão escondidos em nós.