Por Fátima Fontes
Introdução
“Sei não apenas que a percepção de um acontecimento pode incluir seleção do que parece principal, ocultação ou esquecimento do que incomoda, mas também que a lembrança pode alterar seriamente o que ela rememora. Sei que as ideias que nos são necessárias para conhecer o mundo são, ao mesmo tempo, o que nos camufla este mesmo mundo ou o desfigura. Sei também que o olhar do presente retroage sempre sobre o passado histórico ou biográfico que examina. E que ninguém está imune à mentira a si mesmo.” (Edgar Morin, 2002, no livro Meus demônios. 3ª ed. RJ: Bertrand Brasil, 2002).
Já há algum tempo venho refletindo sobre mentiras e verdades da convivência relacional, e como meus ouvidos deram de “escutar” muitas mentiras, resolvi escrever sobre isso.
Há quem diga que mentimos por ter nos afastado de nosso verdadeiro eu, e isso aconteceu muito, muito tempo atrás na linha de nosso desenvolvimento infantil, quando dizer a verdade foi logo entendido pela pequena criança como a revelação de algo que seus cuidadores não queriam que ela sentisse, pensasse ou fosse.
Outra versão para o “vício de mentir” parece ter origem no processo de “habituação de mentir”, e se iniciaria também na infância, quando a criança, o mais das vezes é cercada de adultos que vivem mentindo para si mesmos, para elas e para os outros: não cumprem o que combinam, menos ainda o que dizem, e aprendem assim a mentir. Seria como um contágio social de “mentiras”, que povoam tão rotineiramente nosso cotidiano, a tal ponto que dizer a verdade, se torna uma atividade meio estranha a nós mesmos.
Outras causas, por certo, poderiam ser elencadas aqui, como a “rigidez” cultural ou familiar com a “estrita verdade”, o que também parece abrir caminho para a “brecha da mentira”, como por exemplo, a pessoa é colocada em ambientes ambíguos, que “cobram a verdade”, mas que não deixam espaço para ela. Aí vemos surgir a mentira como um “escape psíquico ou relacional”, do tipo fui cobrado por dois estímulos antagônicos e simultâneos, que assimilei como “não me diga o que não quero ouvir”, ou “não toleramos esse ou aquele padrão” de ação, em nosso meio, por isso não “mostre a sua verdade” e outros percalços que nos estimulam ao exercício das não verdades sociais.
E não estou aqui me referindo ao “pecado da mentira”, tão praticado por nós religiosos e considerado, religiosamente como um “caminho para o inferno”. Mas quero que reflitamos sobre o nosso “inferno relacional”, criado pela prática quase automatizada de tanta mentira relacional.
E o convite fica sendo que, após a reflexão deste artigo, talvez nos tornemos mais atentos às nossas próprias mentiras e assim possamos pautar nosso período natalino, tão abarrotado de bons sentimentos, e nosso ano que nascerá, novo no número, com “enfeites da verdade”, que sem dúvida alguma, contribuirão para a melhoria de nossos vínculos.
Entre mentiras e mentiras: verdades se ocultam
Quando disse que “dei de escutar muitas mentiras”, elas me foram escancaradas não em “espaço privado”, e sim no espaço público. Aliás, no espaço privado, costumamos ser “mais autênticos e verdadeiros” conosco e com o outro.
Em dado dia, estava dentro de um elevador público, que me levaria para meu consultório, e eis que adentra ao recinto, um casal de operadores do direito que também têm escritório no mesmo prédio. Eles não se importaram com a “plateia” que tinham, aliás, eles nem nos notaram… e a esposa foi logo gritando para o marido: “mente para ela, o bom do que fazemos é que podemos mentir com a cara lisa: é só dizer que temos uma audiência e pronto”… e desceram no andar que desejavam, conversando animadamente sobre a mentira que pregariam em alguém.
E as várias falas de adultos mentindo entre si, mentindo para crianças, “criando eventos fantasmas”, criando falsas promessas e interditando desejos infantis, pelo simples “gozo de não serem felizes”, têm sido outra fonte inesgotável de “grande mentiras” em relações interpessoais, que, infelizmente, tenho testemunhado… queria não ter “tantos ouvidos para ouvir” como tenho…
E me torno atônita, me perco nos meandros das mentiras e mentirosos de plantão, e vou me tornando um deles. Ou não? Veja bem, hoje me perguntaram num restaurante que frequento com assiduidade, se estava tudo bem comigo e com os meus, e eu larguei aquela sonora mentira social: “sim, está tudo bem”, mas comentei com meu marido, baixinho a “verdadeira resposta”, que estaria perto do “está tudo muito ruim”… mas outra vez me vi na saia-justa da “boa vizinhança”: o outro não quer “ouvir a verdade, do que está ocorrendo” e sim a “resposta que cabe ao bom convívio”, mesmo que essa resposta seja falsa.
Além desse contexto mais superficial de relacionamento, se estabelecem “acordos” para que se evitem rompimentos nos espaços de intimidade, que exigem o mais total “silenciamento das verdades”. Afinal, os “sinceros de plantão”, logo, logo, se transformam em “misantropos sociais”, são expulsos das “boas vizinhanças”.
E agora, o que faremos? Haverá caminhos a se seguir???
Por mais verdades e relacionamentos mais verdadeiros: o esforço vale a pena
Sempre fui influenciada por pequenas, médias e grandes utopias. Utopias, essas românticas “criações”, elaboradas como uma “resistência ao mesmo”, como uma terceira via, quando nos encontramos à beira dos abismos.
O que distingue a “utopia” de uma “mentira”? Entendo ser seu caráter de verdade. Por mais que a utopia ainda não seja uma realidade, ela traz o “vir a ser” da vida, é algo que precisamos crer que exista, para que possamos prosseguir em nossas batalhas e trincheiras pessoais.
Então eu carrego, como antídoto pessoal, um frasco imaginário de “utopias”, construído com aprendizagens de valores éticos que aprendi, muitas vezes com “mestre mentirosos”, que apesar de não viverem o que ensinavam, passaram seus importantes referenciais para mim. Também compõem minhas utopias, os “mestres verdadeiros”, aqueles que cresci admirando e podendo tê-los como modelos de verdades a seguir.
E com esse pequeno frasco, que preciso reabastecer diariamente, proponho que formemos um “pelotão” de desejosos pelas verdades íntimas, que possam trocar, ao menos, com uma pessoa, que seja, a verdade que nos constitui.
Nesse contato com nossa verdade, acredito ser possível fazer surgir uma “nova pauta pessoal de verdades”, na qual possamos “escolher ser e dizer as verdades”, num tom possível de ser ouvido, quem sabe começando com um sussurro…
E sei que com esse “cordão de três dobras”: nós, nossas verdades e alguns íntimos, já seremos capazes de melhorar as cores acinzentadas de nosso atual mundo relacional.
E para terminar…
Desejo convidar a esperança para juntos, encerrarmos esse artigo.
E para isso, deixarei aqui um trecho da linda “Carta do Cacique Seattle”, escrita pelo Cacique Seattle que viveu entre 1790 e 1866, nos Estados Unidos, que ele aqueça nossos corações e nos auxilie na construção pessoal de verdades e caminhos para a verdade em nossas relações.
“Não foi o homem que teceu a rede da vida; ele é apenas um fio nessa trama. O que ele fizer a esse tecido, estará fazendo a si próprio”.
(Trecho do livro: A carta do Cacique Seattle. Rio de Janeiro: Versal, 200