Livres de toda coerção social, como agiríamos?

Livres de toda coerção social: cairíamos em alguma espécie de barbárie desumana? Ou criaríamos um mundo muito melhor? 

O acidente na usina atômica de Chernobyl, na atual Ucrânia, ainda repercute depois de mais de 35 anos. Uma notícia desse ano reporta que o gado bovino abandonado na região, em função do despovoamento humano, adotou um comportamento selvagem. O gado doméstico, deixado à sua própria sorte, parece ter regredido à sua condição natural. Claro que regressão, selvagem e natural são termos fortes e que podem sugerir algo errado nesse processo.

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De fato, os termos sugerem que, após uma longa interferência humana sobre o comportamento animal, os bovinos teriam retomado sua condição natural. Talvez alguém possa mesmo pensar que se trata de um processo de libertação animal das garras do colonizador humano, essa praga que infesta o planeta.

Vamos tentar avaliar as coisas pensando apenas que o gado abandonado adotou um novo padrão de comportamento em função da ausência de coação exercida pelos humanos. Assim, não precisamos tratar da oposição entre natureza e cultura (bovina).

Como agiríamos se fôssemos livres de toda coerção social?

Como somos humanos e etnocentrados, vamos supor que por algum tipo de evento pudéssemos nos libertar da coerção social e nos colocássemos na mesma situação das vacas de Chernobyl. Esse seria um estado de liberdade? Não seríamos obrigados pelas novas circunstâncias a adotar outro tipo de organização social que funcionaria como um novo sistema de coerção? Qual é, afinal, a condição existencial das vacas de Chernobyl?

Aparentemente, a liberdade que as vacas desfrutaram em função da ausência de coerção humana (ninguém usa força contra elas e as leva para o curral, as cercas não são reparadas, seu leite não é surrupiado. Isso para não falar do fim dos assassinatos frequentes. Então, se pudéssemos usufruir dessa mesma condição, deixados à nossa própria sorte, sem a presença dos sistemas de contenção de comportamento, sem leis, sem regras morais, sem ter que prestar contas aos outros, sem famílias, sem emprego, estaríamos livres?

O mito da hipótese libertária

O fato das vacas de Chernobyl adotarem uma nova estrutura social lança por terra essa hipótese libertária. Afinal, ao adotar um novo padrão comportamental, elas reiniciaram um processo de coerção autônomo com relação ao mundo bovino.

Na prática, ocorreu a substituição da coerção externa realizada pelos demônios humanos pela coerção exercida pelo próprio rebanho. Podemos pensar que essa segunda forma de organização social é melhor, justamente porque se trata de algo que toma forma de dentro do rebanho para fora. Trata-se, afinal, de um modo de ser social que leva em consideração o modo de ser bovino e não mais as finalidades humanas inseridas na vida animal, o controle dos outros sobre nós.

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Podemos dar um passo adiante e pensar, então, que tipo de ordenamento social poderíamos adotar dada a hipótese de nos livrarmos dos colonizadores externos. Primeiro vamos nomear esses últimos, apenas para facilitar. Eles seriam os malditos europeus, os patrões desalmados, os pais e avós e todos os demais antepassados vendidos ao status quo. Na verdade, eles seriam todos os outros exceto nós que vivemos agora. Se pudéssemos, nós que vivemos agora, que tipo de ordenamento social adotaríamos? Regressaríamos a algum estado que já ultrapassamos na história humana? Cairíamos em alguma espécie de barbárie desumana? Ou criaríamos um mundo muito melhor que nos permitisse florescer de uma maneira inteiramente nova?

Infelizmente não tenho as respostas. Mas cada vez admiro mais as vacas de Chernobyl que foram livradas pelo acaso do sistema de expropriação em que se encontravam. E termino com mais uma dúvida: será que a libertação real pode ser fruto do acaso?

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie