por Angelo Medina
Uma noite aparentemente plácida e quente no verão paulistano. Nikita, um homem apreensivo, nervoso, inseguro e, com a adrenalina a mil, dirige o seu carro em direção a Avenida Nove de Julho. Ele faz uma oração. Momentos depois seu amigo, o Nelsinho, entra no carro e Nikita diz para ele:
– Então, vamo que vamo!
Nikita estava indo praticar um assalto. Houve tiroteio, Nelsinho morreu. Nikita foi preso e dava início à sua brilhante carreira no mundo do crime. Seu currículo fala por si só. Condenado por 98 anos, é indiciado por furto, assalto à mão armada, falsidade ideológica, latrocínio (roubo seguido de morte) e teve o mérito, segundo ele, de inaugurar o seqüestro relâmpago em São Paulo.
No momento, fiquem tranqüilos, Nikita se encontra preso no Complexo Penitenciário do Carandiru. Entre os seus projetos para o futuro, está o de puxar pelo menos mais quinze anos de cadeia. À margem da sociedade, Nikita é um homem comum e, em seu universo paralelo e marginal, possui um cotidiano semelhante ao de qualquer cidadão íntegro, que paga em dia seus impostos.
Da mesma forma, caro leitor, que você reza quando vai enfrentar algum desafio profissional, Nikita reza para ir assaltar e matar. Do mesmo modo, que você se preocupa em construir uma sólida carreira profissional articulando contatos, reciclando conhecimentos, fazendo política, parcerias e troca de favores, Nikita, em sua vida bandida, também o faz.
Em entrevista ao Vya Estelar, perguntei ao escritor Ignácio de Loyola Brandão, que conhece a história de Nikita. Qual seria a saída para esse sujeito, um condenado a 98 anos, que fala em puxar pelo menos mais quinze? Loyola responde: Só resta a Nikita escrever suas vivências, como escreveu neste belo projeto, o livro Letras da Liberdade, ED.Madras, no qual tive a oportunidade de comentar o seu relato autobiográfico.
Depois deste prólogo, o leitor deve estar se perguntando… Por que um assunto tão heavy como este, pode pautar um site que aborda autoconhecimento e qualidade de vida? O livro Letras de Liberdade é uma obra que reúne 15 histórias e contos escritos por detentos do Complexo Penitenciário do Carandiru. Algumas histórias contam desde a infância dos presidiários até sua chegada à cadeia, pais e educadores procuram a obra para conhecer o caminho que pode levar as crianças ao crime e detectar os primeiros sintomas, de mudança de comportamento dentro de casa, que levam o jovem para a marginalidade.
Amigos e parentes de pessoas com histórico de alcoolismo ou uso de drogas ilícitas procuram, através da obra, entender o vício e ajudar a pessoa a se livrar dele. No entanto, o mais interessante é a sensação que o livro promove em qualquer pessoa: a percepção de que até um de nós, cidadãos considerados íntegros e equilibrados mental e socialmente, podemos cair nesse submundo. Lobão, Ignácio de Loyola Brandão, Marcelo Rezende, entre outros, comentam um conto escrito por um detento.
O livro é fruto de uma idéia simples e despretensiosa. Alguns detentos do Carandiru, que concederam depoimentos ao Dr. Drauzio Varella, queriam contar de seu próprio punho, as suas histórias imersas neste universo descrito pelo médico. Através de concurso, 15 textos foram selecionados, num total de 345. Loyola comentou a história mais pesada do livro – a de Nikita – onde a realidade sucumbe a aterradora ficção. Lobão escreveu sobre a vida bandida de Vanderlei Fisher, indiciado por assalto à mão armada e furto, condenado a 10 anos de prisão.
Nesta entrevista ao Vya Estelar, o cantor Lobão e o escritor Ignácio de Loyola Brandão falam de suas participações no livro e opinam sobre os mecanismos da violência. Lobão também fala de seu desejo de não precisar escrever mais letras denunciando a violência urbana e de um fato inusitado acontecido na sua prisão. O cantor também revela o seu jeito de ser.
Entrevista: Lobão
Vya Estelar – Você comenta no posfácio que quando você foi preso te perguntaram: "cara, aqui na prisão só tem preto, pobre ou burro… onde tu enquadra?" O que você respondeu para este sujeito?
Lobão – É claro que eu ri. É o tipo da pergunta que não precisa de resposta. A pergunta é uma realidade em si.
Vya Estelar – Por que você decidiu escrever o posfácio do Livro Letras da Liberdade sobre a vida do detento Vanderlei Fischer?
Lobão – Porque fui convidado a fazê-lo, li, adorei e escrevi.
Vya Estelar – Através do texto narrado por Vanderlei você percebeu um misto de afeto e arrependimento. Você acredita que um projeto deste tipo (livro Letras da Liberdade) pode ajudar na causa do combate a violência?
Lobão – Claro que sim. Está mais do que provado que a verbalização diminui a criminalidade.
Vya Estelar – Em seu posfácio você comenta que o cara ao sentir as agruras da exclusão se sente entusiasmado de ser respeitado através do crime. Como é isso? Esta seria a causa da violência?
Lobão – A causa da violência é a falta de contato com o outro. Esse é o início de tudo.
Vya Estelar – Você comenta também a questão de jovens da classe média entrarem no tráfico de drogas para terem status social (minas, carros, celular)? Mesmo na classe média, a causa da entrada de jovens no crime, passa pela questão social somente ou você atribuiria algum outro fator?
Lobão – A coisa é bem mais complexa né? Mas o fator principal é o tédio e a falta de informação e perspectiva.
Vya Estelar – Como você avalia o seguinte discurso "…as pessoas falam em direitos humanos, mas bandido bom é bandido morto… "?
Lobão – Isso é de uma imbecilidade escandalosa.
Vya Estelar – Por que no seu texto você comenta que os detentos ao narrarem suas experiências melhoram a autoestima?
Lobão – Porque tem condições de avaliar, de reconhecer e tudo isso é exercido pela verbalização, ou seja, são inúmeros aspectos meritórios e dignos de auto-estima, não é verdade?
Vya Estelar – Você acha que este livro seria um alerta para pais e filhos detectarem os primeiros sintomas do caminho do crime?
Lobão – Eu acredito que, antes de mais nada, é um livro rico de informações, escrito com muita verdade e emoção, que proporciona ao leitor um contato mais profundo com a realidade profunda de uma outra classe social tão próxima e tão distante.
Vya Estelar – Qual é o caminho para você não precisar mais escrever letras como "Vida Bandida" e "A Vida É Doce" e escrever apenas temas mais amenos como "Universo Paralelo."?
Lobão – Em primeiro lugar, gostaria de dizer que o bacana é justamente escrever coisas como a Vida É Doce (uma ironia da vida urbana atual) e outras como o Universo Paralelo. A letra de Universo Paralelo possui uma proposta ambígua. Tanto pode ser uma transa, um movimento estético, um movimento político ou talvez uma caminhada.
Vya Estelar – Você acredita nesta teoria do hiperespaço, do Universo Paralelo, defendida por alguns físicos, como Michio Kaku, sobre a existência de outras dimensões?
Lobão – Eu acredito no Universo Paralelo sem sombra de dúvidas.
Vya Estelar – Como você busca autoconhecimento e qualidade de vida?
Lobão – Eu sou eu 24 horas por dia, intensamente.
Vya Estelar – Você é místico? Tem religião?
Lobão – Não
Entrevista: Ignácio de Loyola Brandão
Vya Estelar – Por que você escreveu o comentário sobre o texto de Nikita no livro Letras da Liberdade?
Loyola – Fiquei fascinado com o projeto. É uma possibilidade de você ver de perto como os encarcerados olham o mundo. É impressionante pensar que o Nikita vivenciou o que ele escreveu. No meio de tanta violência é possível captar em seu texto imagens poéticas. Vida e literatura se misturam.
Vya Estelar – O que mais te tocou no texto do Nikita?
Loyola – A normalidade como Nikita trabalha no mundo do crime me impressionou. Ele só não bate o ponto.
Vya Estelar – Qual é a saída para um bandido condenado a 98 anos de prisão como o Nikita?
Loyola – A saída dele é escrever. Não sei nem se nós temos saída.
Vya Estelar – Por onde passa a questão da violência?
Loyola – Passa pelo intimo do homem e pela própria natureza humana. Alguns são violentos e alguns se contém.
Vya Estelar – Você acredita que um projeto deste tipo pode amenizar o problema da criminalidade?
Loyola – É uma gota no mar, mas é uma parte.
Vya Estelar – O livro poderia ser um sinal de alerta para os pais detectarem algum envolvimento dos filhos com a criminalidade?
Loyola – Pode ser. Porém, a questão das drogas é uma questão mais complicada. Envolve o sabor do fruto proibido, a moral cristã e etc.
Conto – Fragmentos – Crime: Problema ou solução? Caminho sem volta
Autor : Nikita (relato autobiográfico)
A ficha
Nome: Nikita
Data de nascimento 17/02/1960
Indiciação: Furto/Assalto à mão armada/Falsidade ideológica/Latrocínio Condenação: 98 anos
Nikita reza antes de ir fazer um assalto num prédio da Avenida 9 de Julho em São Paulo
"Era uma noite muito quente de verão paulistano. "Maó Calor". Fiz minha oração. Liguei o carro e fui para o encontro do Nelsinho.
– Tá em cima. Então, vamo que vamo!"
Nikita avalia o mercado de trabalho
"Com um pouco de dinheiro que tinha guardado e com muita astúcia, consegui um albergue domiciliar em 1983. Chegando na rua, vi que agora as coisas tinham mudado muito sob o aspecto da criminalidade. Quem roubava comércio, "ap." ou indústrias, agora estava roubando bancos. Era a "febre dos bancos" como ladrão falava."
Self made man
"Logo que fui até a casa de um parceiro antigo que sempre mantinha contato comigo na prisão. O Português estava muito bem no tráfico de drogas: dois carros, duas casas e um enorme estoque de maconha. Quando cheguei, ele me deu um 38 e 23 balas, 12 de chumbo e 11 dum-dum. Presenteou-me com um quilo de maconha e me aconselhou:
– Pega leve que a rota está matando"
Jantar à luz de balas
"Comprei um Golzinho e fui lá no Galvão. Houve um bate-boca entre o Galvão e um cara. As coisas ficaram muito quentes e saíram na mão. O Galvão sangrava muito. Entrei na confusão e dei dois tiros no "prego" – o agressor do Galvão – , que caiu no chão sangrando muito. Estragou o jantar."
Nikita: bandido cidadão e chefe de família
Sobre um convite para assaltar uma agência de turismo – roubo de dólares
"Gostei da ideia, pois agora mais do que nunca iria precisar de muito dinheiro, pois com mulher e filho as coisas mudavam muito."
Planos de carreira
"Agora só saio daqui se fugir, do contrário, tá embassado. Estou preso há 20 anos. Será que consigo puxar mais 15?"