por Roberto Goldkorn
Uma situação de tragicomédia que vivi há muitos anos vai aqui para abrir de forma explicativa esse texto. Eu trabalhava numa revista de alimentação e vida alternativa, quando entrevistei um 'guru' da alimentação natural. Dias antes de a revista sair, a fotógrafa que havia feito as fotos do 'guru', entrou esbaforida na minha sala dizendo: “Temos de tirar a entrevista do guru da revista.” Sem nem ao menos esperar eu tomar fôlego ela disparou: “Ele acaba de morrer”. Fiquei alguns segundos tentando entender tudo aquilo.
Na verdade minha cabeça vagou por universos nevoentos onde a alma humana se esconde da lógica. Eu entendi imediatamente o raciocínio da fotógrafa. Ela achava que por ser o sujeito um mestre da alimentação natural, dos hábitos saudáveis de vida, não teria o direito à morte comum de cada um de nós. E mais, ela achava que estaríamos entrando em 'contradição' publicando a entrevista de um 'guru' da saúde, em uma revista de saúde, mas que teve a ousadia de morrer aos setenta anos!
Tentei argumentar com ela que não importa que ele tenha morrido e sim como ele viveu, e que a alimentação saudável, não é um passaporte para a imortalidade. Mas o episódio me ajudou muito a entender como funcionam algumas mentes quando o assunto é a morte. Com esse caso desejo introduzir o impacto que a morte do Bussunda – Cláudio Besserman Vianna – do Casseta & Planeta teve sobre muitas pessoas.
Esse texto quer falar sobre a mortalidade que teimamos em considerar tão obscura como um país africano, (sabemos que existe, mas também sabemos que está tão distante da nossa realidade que pelo menos nos próximos cinqüenta anos não pretendemos ir até lá). Bussunda morreu! Mas como? Ele não pode ter morrido, ainda ontem dei muitas risadas com sua imitação do Ronaldo o fenômeno comendo um cachorro quente na Alemanha. Esse sentimento de incompreensão, de perplexidade, de revolta que algumas mortes provocam, é o nosso tema de hoje.
A morte de Bussunda é diferente da morte de soldados e insurgentes no Iraque. Claro que sim, é a mesma morte, mas o Bussunda nós conhecemos. O Bussunda é de casa, entra na nossa casa pela janela da telinha e nos faz rir toda semana. Mas, será só essa a grande diferença? O meu pai também era “de casa” e a sua morte foi recebida com alívio, afinal ele estava com 85 e corroído pelo Alzheimer. Mas será que é só essa a diferença? Não, não creio. E para me ajudar recordo a frase atribuída a Ricardo Amaral, o rei da noite do Rio (do século passado), que disse: “Morrer é uma sacanagem quando se vive tão bem.” Pois é isso meus amigos e minhas amigas. A morte do Bussunda nos chocou um tantinho a mais porque ele era a imagem da alegria de viver.
Quem de nós não alimentou uma pontinha de inveja dele, por ele apesar de gordo, feio e desengonçado, ganhar dinheiro, estar cercado de mulheres lindas, ter uma família linda e ter conseguido tudo isso rindo e fazendo rir? Virou um clichê verdadeiro dizer dele: era o representante legítimo da “alma” carioca: irreverente, flamenguista, bom de garfo, e sem estresse. Essa era a imagem que dele se apreendia. A imagem de um cara de bem com a vida, de um cara alegre, bem-sucedido, resolvido em todos os aspectos e em resumo feliz. Por isso é tão difícil aceitar a morte dele.
Por que Bussunda morreu 'duas' vezes
Ainda não ficou claro? OK vamos lá. Existem duas mortes. A 'morte' que gruda no cangote das pessoas enquanto elas ainda estão vivas, ou pelo menos respirando, andando e existindo. Essa morte faz com que seus corpos ainda tenham atividade, mas não permite que sejam alegres, que sejam queridas, que sejam felizes. Andam pela vida apenas esperando chegar a derradeira hora. Quando uma dessas pessoas morre pela segunda vez, com aquela morte que leva ao cemitério, a gente não sente tanto, a gente compreende, "chegou a hora dele”, “é a vontade de Deus”, “agora ele vai poder descansar” e assim vai.
Mas como ser tão compreensivo com alguém que não só estava vivo (pré-requisito básico para se morrer, a não ser que seja a Bia Falcão – vilã do folhetim global Belíssima interpretada por Fernanda Montenegro), mas era a própria alegria de viver em carne e osso e muitas gordurinhas? Mas ainda tem mais. A nossa incompreensão se torna mais séria quando perdemos alguém que nos fazia rir, cutucava, provocava e nos fazia experimentar por alguns momentos a sua própria alegria de viver, afugentando temporariamente a morte urubulina encanganchada no nosso cangote. É isso mesmo, não aceitamos facilmente a morte do Bussunda, porque ele nos dava aquela sensação de podermos partilhar daquele “algo mais que apenas viver” com ele e a sua turma. Assim Bussunda morreu 'duas' vezes. E para a maioria de nós, aquele país africano fica mais próximo.