Maconha sintética (ou erva falsa) e o efeito zumbi  

A maconha sintética ou erva falsa afeta o cérebro com mais intensidade que a maconha. Os canabinoides sintéticos são pulverizados sobre material vegetal e, posteriormente, embalados e distribuídos ao público e podem ser inalados, ingeridos ou mesmo injetados.

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“Eu tenho feito uso de cannabis sintético e nunca fiquei parecendo um zumbi. A mídia tem divulgado uma conexão entre o uso de K9 e um “efeito zumbi” entre os usuários. O quanto disso é verdade?”

Resposta: Ao longo do último meio século, tem surgido uma nova classe de drogas recreativas, os chamados Agonistas dos Receptores Canabinoides Sintéticos (ARCs). Estas substâncias são um grupo de compostos que foram originalmente criados como agentes terapêuticos, tendo em vista a especificidade pelos receptores endógenos dos canabinoides.

Infelizmente, laboratórios clandestinos acabaram por sintetizar e comercializar ARCs, tornando o acesso mais fácil. Apesar de ter sido originalmente concebido na década de 1960 como um potencial agente terapêutico, houve um aumento significativo nos últimos anos em seu uso recreativo e abuso, em grande parte devido à sua legalidade ambígua, fácil disponibilidade e falta de reatividade cruzada com testes de drogas de urina estabelecidos para o Tetrahidrocanabinol (THC)

Esses compostos sintéticos são pulverizados sobre material vegetal e, posteriormente, embalados e distribuídos ao público; podem ser inalados, ingeridos ou mesmo injetados.

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Maconha sintética ou erva falsa

A maconha sintética não é segura é pode afetar o cérebro com mais intensidade que a maconha

Os canabinoides sintéticos, por serem semelhantes na sua estrutura ao THC, são, às vezes, chamados de maconha sintética (ou erva falsa) e são vendidos como alternativas “legais” e seguras à maconha. Na verdade, eles não são seguros e podem afetar o cérebro com mais intensidade do que a maconha; seus efeitos reais podem ser imprevisíveis e, em alguns casos, mais perigosos ou até fatais.

A maioria dos canabinoides sintéticos têm maior afinidade pelo receptor canabinoide CB1 do que o próprio Tetrahidrocanabinol (THC). Os canabinoides sintéticos também têm maior afinidade com o receptor CB1 do que com o receptor CB2. Os receptores canabinoides, que estão espalhados pelo corpo, fazem parte do sistema endocanabinoide, que está envolvido em uma variedade de processos fisiológicos, incluindo apetite, dor, humor e memória.

Quando os canabinoides sintéticos ativam os receptores CB1 (efeitos psicoativos) ou CB2 (grosso modo, efeitos anti-inflamatórios), eles mudam a maneira como sistemas neurais específicos e o sistema imunológico funcionam. Os estudos in vitro e in vivo em animais mostraram que os efeitos farmacológicos dos canabinóides sintéticos são duas a quase cem vezes mais potentes que o THC (1).

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Durante vários anos, os canabinóides sintéticos foram fáceis de comprar em lojas tipo “tabacarias”, postos de gasolina e principalmente através da Internet. Dado que esses produtos não têm nenhum benefício médico, mas têm um grande potencial de abuso, legisladores de diferentes países têm tornado ilegal a venda, compra ou posse de alguns desses produtos químicos. Contudo, os fabricantes tentam contornar essas leis alterando as fórmulas químicas de suas misturas.

O fácil acesso e a crença de que os produtos canabinoides sintéticos são naturais e, portanto, inofensivos, provavelmente contribuíram para o seu uso entre jovens. Outra razão para seu uso contínuo é que os testes padrão de drogas não podem detectar facilmente muitos dos produtos químicos usados nesses produtos.

Efeitos agudos ou de curto prazo da maconha sintética

De forma simplista, os canabinoides sintéticos têm efeitos fisiológicos e psicoativos semelhantes ao THC, mas com maior intensidade, podendo causar emergências médicas e psiquiátricas.

Vários registros nos gêneros textuais médicos sugerem que os efeitos negativos da ingestão dos ARCs incluem:

a) vômitos
b) taquicardia ou bradicardia
c) tremor
d) agitação severa
e) psicose (por exemplo, sintomas de alucinações e delírios) (2).

Existem relatos descrevendo tolerância e síndrome de abstinência para vários tipos de canabinoides sintéticos (3).

O Centro de Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos da América reconhece o caráter nocivo dos canabinoides sintéticos e apresenta alguns dos seus efeitos deletérios mais frequentes:

a) sinais e sintomas neurológicos: agitação, sonolência, irritabilidade, confusão, tontura, incoordenação, incapacidade de concentração, acidentes vasculares cerebrais e convulsões
b) sinais e sintomas psiquiátricos: alucinações, delírios, comportamento violento e pensamentos suicidas
c) outros sinais e sintomas físicos: taquipneia (respiração rápida e curta), taquicardia, hipertensão, náuseas e vômitos incoercíveis, dor no peito e infarto miocárdico, rabdomiólise (destruição muscular em massa com implicações renais imediatas), insuficiência renal e morte.

O tempo entre o uso de canabinoides sintéticos, o início dos sintomas e a recuperação depende de vários fatores, tais como:

a) a quantidade e tipo do(s) canabinoide(s) sintético(s) específico(s) usado(s)
b) a via de exposição (inalação, ingestão, puff)
c) a combinação com outros tipos de substâncias psicoativas.

Repito o fato de que algumas pessoas que interrompem o uso de canabinoides sintéticos após um longo período de uso relatam sintomas graves como: convulsões, batimentos cardíacos acelerados, dor no peito, palpitações e dificuldade para respirar. A intensidade desses sintomas de abstinência pode estar ligada à quantidade e ao tempo em que alguém usou canabinoides sintéticos.

Maconha sintética: efeitos do uso em longo prazo

Estudos de neuroimagem mostraram que o uso repetido de cannabinoides sintéticos foi associado às alterações estruturais e funcionais no Sistema Nervoso Central. As alterações nas regiões pré-frontal e límbica, que estão envolvidas nas funções de processamento cognitivo e emocional, foram, curiosamente, observadas. No entanto, embora as manifestações comportamentais dessas alterações neuronais sejam modestas em alguns usuários, estudos pré-clínicos mostraram que o uso crônico com agonistas canabinoides causou comprometimento cognitivo grave e persistente, bem como uma franca desregulação emocional.

Esses estudos mostraram uma associação entre o uso repetido de agonistas canabinoides e déficits cognitivos em uma grande variedade de domínios, incluindo atenção, memória e flexibilidade cognitiva.

Os usuários de canabinoides sintéticos apresentam menor precisão e maior tempo de reação nas tarefas cognitivas em comparação com os não usuários e usuários de maconha. O comprometimento da memória já foi associado a déficits estruturais e funcionais em diversas áreas do cérebro, como o giro frontal médio, giro orbital frontal, giro frontal inferior, ínsula, córtex cingulado anterior e precuneus.

Infelizmente, os usuários de canabinoides sintéticos têm manifestado sintomas de depressão juntamente com deficiências cognitivas (4). Jovens usuários de canabinoides sintéticos apresentam alterações na memória de curto prazo e psicose, como sintomas principais a longo prazo.

Existem várias substâncias psicoativas cujos efeitos do uso por médio a longo prazo podem ser denominados pela mídia como “efeitos Zumbi”. O k9 é um dos canabinoides sintéticos abusados principalmente por jovens; o seu uso recorrente pode induzir prejuízos na memória, na capacidade de focar nas atividades escolares e laborais, além de prejudicar as respostas afetivas.

Como você diz que usa, eu aconselho que deixe de usar imediatamente. A interrupção do consumo, muitas vezes, produz sintomas de síndrome de abstinência. Um médico psiquiatra especialista deverá ser procurado e o tratamento proposto deve ser seguido de forma adequada.

Pense e aja !!!

Referências

  1. Castaneto MS, Gorelick DA, Desrosiers NA, Hartman RL, Pirard S, Huestis MA. Synthetic cannabinoids: epidemiology, pharmacodynamics, and clinical implications. Drug Alcohol Depend. 2014;144:12-41.
  2. Zaurova M, Hoffman RS, Vlahov D, Manini AF. Clinical Effects of Synthetic Cannabinoid Receptor Agonists Compared with Marijuana in Emergency Department Patients with Acute Drug Overdose. J Med Toxicol. 2016;12(4):335-40.
  3. Zimmermann US, Winkelmann PR, Pilhatsch M, Nees JA, Spanagel R, Schulz K. Withdrawal phenomena and dependence syndrome after the consumption of “spice gold”. Dtsch Arztebl Int. 2009;106(27):464-7.
  4. Cohen K, Mama Y, Rosca P, Pinhasov A, Weinstein A. Chronic Use of Synthetic Cannabinoids Is Associated With Impairment in Working Memory and Mental Flexibility. Front Psychiatry. 2020;11:602.

Professor Livre-Docente pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Professor de Psiquiatria do Centro Universitário Faculdade de Medicina do ABC. Pesquisador nas áreas de Dependências Químicas, Transtornos da Sexualidade e Clínica Forense.