por Monica Aiub
Tratando ainda de medos, um dos medos que aparecem com certa constância no consultório de filosofia clínica é o medo de ser o que se é. Num primeiro momento, parece ser estranho que alguém tenha medo de ser como é. Mas se observarmos os padrões e exigências sociais, os modelos que nos são cobrados, uma mínima variação pode ser assustadora.
“Eu sou uma péssima pessoa”; “Eu sou horrível”; “Eu não sei lidar com as pessoas”; “Eu não sei me relacionar”; “Eu sou um monstro”; “Eu sou um E.T.”; “Eu sou uma pessoa estranha, esquisita, diferente, não adaptada…”; “Eu não sou deste mundo”; “Eu não tenho emoções”; “Eu não tenho valores”. Estas e outras afirmações aparecem nas narrativas dos partilhantes (pacientes), mas o que significam tais expressões? Não há como saber sem pesquisar, com a própria pessoa, o que cada expressão significa em cada um dos contextos em que é proferida.
É comum que o partilhante que inicialmente tenha se afirmado como, por exemplo, alguém sem emoções, conte emotivamente sua história e descreva várias emoções durante o percurso de sua narrativa. Por que, então, essa pessoa pensa não ter emoções? Vários podem ser os motivos e é preciso pesquisá-los. Em outro exemplo, o partilhante pode se afirmar como alguém sem valores, mas em sua narrativa apresentar-se como alguém que não apenas possui uma forte escala de valores, como age a partir dela. Assim, o trabalho do filósofo clínico é traçar, a partir da historicidade contada pelo partilhante, uma pesquisa sobre a gênese das questões e dos elementos determinantes na existência dessa pessoa. É, ainda, provocar a pessoa a observar a si mesma em seus contextos, a apropriar-se de seus modos de ser e de viver, para que ganhe graus de liberdade na condução de sua vida.
Acontece que isso não é tão simples. Façamos um exercício. Observe-se, tente apreender, a partir da observação dos padrões de sua existência, seus modos de ser, de sentir, de pensar, de viver… Muitos deles, certamente, escaparão, pois ao pensarmos sobre nossos modos de pensar, o fazemos a partir de nossa própria estrutura de pensar; ao observarmos nossos modos de sentir, o fazemos a partir de nosso próprio sentir; ao pensarmos em modos para lidar com as questões cotidianas, pensamos a partir de nossos modos padrão, ou seja, como habitualmente fazemos. Em outra palavras, estamos habituados a ver, sentir, pensar, ser de uma determinada forma, e até para observar e avaliar esta forma, partimos dela. Daí a necessidade do outro, de alguém que pensa diferente de nós, que vive de modo diverso, que sente de outra maneira. O encontro com esse outro, quando nos dispomos a ele, nos permite observar nossos modos e pensar para além deles. Mas nem sempre estamos dispostos, ou nos permitimos ouvir, pensar ou sentir o que o outro nos propõe.
Ao mesmo tempo em que o outro, por ser diferente, nos assusta, nos amedronta, o estranhamento causado pelo contato com o diferente coloca em questionamento nosso modo de ser. O que, em muitas situações, é absurdamente assustador. Nesse caso, descobrir-se diante de um outro ser, perceber-se diferente, pode ser uma experiência aterrorizante, embora também possa ser uma experiência encantadora e enriquecedora.
Diante das diferentes formas de ser, o que você sente? O que a diferença provoca em você?
Mas voltemos ao exercício de auto-observação. Como você é? Como é seu modo de ser no mundo? Você conseguiria dar uma única resposta a esta questão? Ou há variações em seu modo de ser? Como você pensa? Novamente, é possível uma única resposta ou seu pensar varia de acordo com múltiplos critérios? Podemos afirmar que somos de determinada maneira ou corremos o risco de, no momento de nossa afirmação, deixarmos de ser?
Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático, afirmou que “nada permanece o mesmo”. Você permanece o mesmo? Algo em você permanece o mesmo? E se algo não permaneceu, você consegue compreender o processo de movimentação ocorrido em sua história?
Medo de ser o que se é. Mas o que se é? Quem somos nós? Haveria uma resposta única para esta questão?
Ao mesmo tempo em que tendemos à compreensão do constante movimento da existência, da ação do acaso, dos encontros transformadores, nossa necessidade de rótulos, títulos, fórmulas, receitas, padrões é muito grande. Estabelecemos padrões, impomos tais padrões a nós mesmos, e diante da natural dificuldade em vivenciá-los, consideramo-nos anomalias e tememos a nós mesmos e nossas possibilidades de ação.
Talvez estes padrões estejam muito mais em nossas abstrações do que na natureza, cujo padrão parece ser não ter um padrão. Mais objetivamente, quando tento traçar como sou, independentemente dos contextos nos quais sou, traço um desenho abstrato, que não corresponde àquilo que sou. Por vezes, assusto-me e temo por ser. Outra vezes, assusto-me e temo por não ser. O problema, nestes casos, é querer ser absolutamente, num espaço e num tempo abstratos, fora das relações nas quais estamos inseridos o tempo inteiro.
Somente somos em relação, seja ela com o mundo, com o outro, com nossas atividades, conosco etc. E cada relação nos constitui, ao mesmo tempo em que é constituída por nós. Assim, mais do que pensar em nossos modos de ser, sentir, pensar, viver de modo abstrato, é preciso observar como, de fato, somos, sentimos, pensamos, vivemos diante de nossas relações, diante de nossos encontros.
Talvez a compreensão de que “somos muitos”, e que todos estes que fomos, somos e seremos nos constituem, possa nos auxiliar a viver aquilo que somos. Sem, é claro, esquecer que vivemos em relação com outros e com contextos, e somos, todo o tempo, constituídos por tais relações.