por Roberto Goldkorn
São Tomás de Aquino um dos maiores pensadores da Igreja, que viveu na Idade Média e tem prestígio até hoje, afirmava sem a menor sombra de dúvida que o paraíso bíblico era sim um lugar físico, em algum canto inacessível da Terra, e só por isso ainda não fora encontrado.
Já o tribunal do Santo Ofício condenou Galileu Galilei, por suas teorias sobre a posição da terra em relação ao Sol. Em um dos despachos decreta: "1. A proposição de que o Sol está no centro do mundo e imóvel em seu lugar é absurda, filosoficamente falsa e formalmente herética, porque expressamente contrária às Sagradas Escrituras. 2. A proposição de que a Terra não é o centro do mundo nem imóvel, mas que se move e também com movimento diurno, é também filosoficamente falsa, e teologicamente considerada pelo menos errônea na fé." Galileu foi colocado na seguinte posição: ou se retratava dizendo que estava errado, ou iria para a cadeia ou para a fogueira. Ele se retratou.
Semana passada uma velha amiga me telefonou avisando que um texto meu, que ela conhecia há pelo menos quinze anos, estava na internet, adotado por uma poetisa diletante. A minha amiga quando era gerente de marketing de uma multinacional, pediu-me a cessão desse texto intitulado: "Precisa-se de um Amigo" para fazer uma peça de divulgação e entregar a todos os distribuidores da empresa, espalhados pelo país. Contou-me ela que tomou a iniciativa de entrar em contato com a moça "autora" do meu texto. A poetisa ou poeta como querem alguns, ficou desconcertada, mas não perdeu a pose, disse que deveria estar havendo algum engano, pois ela tinha escrito esse texto em 1996 (aos 20 anos), quando se apaixonou por um professor.
De nada adiantaram os argumentos da minha amiga que acabou imaginando que não seria esse o caso de "uma sincronicidade junguiana?" Eu entrei no circuito para pedir que pelo menos a poetisa tirasse o texto e a sua alegada autoria da sua página, onde ela fazia uma defesa apaixonada dos seus direitos autorais, uma vez que o referido texto circula pela net com a autoria atribuída a Charles Chaplin. Depois de uma troca de e-mails, onde eu lhe afirmava que havia provas documentais e testemunhais irrefutáveis (inclusive com notas fiscais) de que o texto era de 1985, ela me respondeu: "Não temo uma ação jurídica, estou pronta a provar que esse texto é meu e caso encerrado".
Para mim estou me lixando para essa pendenga, esse texto foi apenas um de centenas que escrevi ao longo desses trinta anos. O que me fascinou, o que me intrigou foram os mecanismos psíquicos que estavam em ação na cabeça dessa moça. Como um observador esforçado da 'realidade', logo me coloquei a caminho para tentar entender esses mecanismos, e ao mesmo tempo, 'filosoficamente', revisitar o conceito de 'verdade' e 'realidade'.
Não tenho dúvidas de que a poetisa está certa de sua 'autoria', de que está sendo sincera na sua indignação contra alguém que surge do nada e tenta 'roubar' um texto 'seu'. Poderíamos até buscar ajuda na parapsicologia para entender seu comportamento que a meu ver tem as mesmas bases e mesma gênese que a maioria dos casos de xenoglossia (falar línguas estrangeiras desconhecidas).
Mas não é por aí que quero levar essa prosa. O que me fascinou no episódio é como a idéia de realidade, de verdade, é flácida, coloidal, flexível, camaleônica. Qual é a verdade? Para ela, sem dúvida, é a da grande injustiça que a Internet faz com os autores nacionais de furtar-lhes autoria, apenas por serem desconhecidos tupiniquins, e consigná-las a ilustres mortos como o Chaplin, Vinícius (tenho textos meus vagando pela net atribuídos ao Vinícius de Moraes). Por que eu seria o proprietário dessa verdade? Só porque tenho provas de que o texto é meu? Só porque me lembro do dia e do local em que escrevi o texto, movido por uma exigência comercial e não por inspiração divina? Provas podem ser manipuladas. A minha convicção pessoal tem tanto valor quanto à dela. As minhas testemunhas são tão válidas quanto as que ela porventura possa arrolar.
O que fazer diante disso? Devemos todos adotar a mentira? Ou cairmos em depressão por não haver mais as colunas da realidade para nos segurarmos? Devemos abrir mão do árduo exercício de encarar a realidade por pior que ela nos pareça, sem enchermos o copo de whisky, ou comer até estourar? São perguntas cada vez mais difíceis de responder com honestidade. Observo a campanha política e pasmo (ma non troppo: mas não muito) vejo alguns candidatos manipularem vergonhosamente as estatísticas (realidade irrefutável) para aparecerem bem na fita, colando na nossa testa a etiqueta de imbecis.
Da minha parte agarro-me nos destroços mais pesados das verdades flutuando no oceano das perplexidades. Ainda tento me perguntar (e as minhas filhas e ao meu filho) diante de uma situação limítrofe: isso é fato ou ficção? E se virarmos do avesso o que teremos? Ouviu o outro lado? Por fim respondo à poetisa minha "sócia" no texto em questão, com uma frase que não é minha viu, é do dramaturgo Bertold Brecht colocada na boca do Galileu já citado, após a sua condenação pela Inquisição a se retratar: "A verdade é filha do tempo e não da autoridade". E o tempo mostrou que estava (quase) certo.