por Danilo Baltieri
Depoimento de uma leitora:
“Olá! O que fazer quando seu filho é usuário de maconha e sente cólicas abdominais que o levam a se autoflagelar? Nenhum médico conseguiu encontrar a raiz das dores. Pesquisando encontrei uma síndrome chamada Cannabis Hyperemesis, alguém pode me ajudar por favor?”
Resposta: As ações da maconha (Δ9 – tetrahydrocannabinol; THC) não se restringem ao cérebro, mas também atingem muitos outros sistemas orgânicos. No sistema gastrintestinal, por exemplo, as atividades da maconha parecem ser mediadas por um grupo de receptores endógenos para canabinoides, conhecido como CB1.
A ação do THC sobre estes receptores pode gerar retardo no esvaziamento gástrico, redução da secreção de ácido clorídrico, dor visceral, inflamação de partes do trato gastrintestinal e dificuldades para o relaxamento do esfíncter esofágico. Apesar deste efeito periférico – retardo do esvaziamento gástrico – poder, por si só, provocar náuseas e vômitos, este não é um sintoma comumente referido pelos usuários desta substância psicoativa. Isso se deve ao fato do THC também ter propriedades antieméticas (contra vômitos, náuseas, enjoos), oriundas da sua ação direta no próprio cérebro e estas atividades centrais inibidoras de náuseas e vômitos geralmente suplantam as ações periféricas.
A chamada Síndrome da Hiperemese Canábica foi descrita recentemente, no ano de 2004. Tipicamente, os portadores são jovens e apresentam história de consumo crônico de maconha. Na grande parte dos casos reportados na literatura, o quadro deu início após anos (3 a 15 anos) de uso da substância psicoativa e envolvendo sujeitos que faziam uso diário ou muito frequente da droga.
Critérios diagnósticos têm sido propostos para a Síndrome de *Hiperemese Canábica, tais como:
a) consumo de THC por longo prazo;
b) *náuseas e vômitos intermitentes e intensos;
c) redução significativa dos sintomas, quando o consumo de THC é interrompido;
d) busca frequente por pronto-socorros para obter o alívio do desconforto abdominal;
e) dor abdominal importante;
f) os sintomas são aliviados com banhos quentes;
g) os sintomas são mais frequentes pela manhã;
h) falta de antecedentes pessoais de problemas intestinais.
Alguns autores têm, também, dividido esta síndrome em três fases:
a) Fase Prodrômica ou Pré-Emética: nesta fase, o usuário de maconha acorda de manhã com leve sensação de náusea, tem medo de vomitar e reporta leve desconforto abdominal. Mesmo assim, seu padrão alimentar não tende a se modificar e o consumo da droga pode até mesmo aumentar, visto que o sujeito acredita que a maconha poderá “tratar” estes sintomas;
b) Fase Emética: nesta fase, o sujeito apresenta eventos paroxísticos (eventos súbitos) de intensa náusea, vômito e dor abdominal. De fato, são eventos súbitos e intermitentes (não contínuos), mas, muitas vezes, incapacitantes uma vez que o sujeito não consegue, nesta fase, desempenhar adequadamente suas atividades rotineiras. Um comportamento bastante reportado na literatura são os repetidos banhos quentes que os sujeitos tomam, como uma forma de aliviar o desconforto. Esta fase dura entre 24 e 48 horas, mas a recaída é elevada caso o sujeito mantenha o consumo de maconha;
c) Fase de recuperação: após a fase acima, o sujeito pode não sentir os sintomas gastrintestinais por semanas ou meses. Nesta fase, comumente, o sujeito volta a ganhar peso, mas, infelizmente, costuma retornar ao uso da maconha, acreditando, de fato, na sua inocuidade.
Na verdade, indivíduos que apresentam esta síndrome somente são corretamente diagnosticados após meses ou anos de investigação médica. Os sintomas da síndrome podem ser oriundos de diferentes doenças; logo, as investigações clínicas e laboratoriais realmente se impõem.
Um quadro clínico bastante similar à Síndrome da Hiperemese Canábica é a chamada Síndrome do Vômito Cíclico. Embora os sintomas sejam extremamente parecidos, na Síndrome do Vômito Cíclico, a coexistência de enxaquecas, sintomas depressivos e ansiosos é mais evidente. Além disso, o esvaziamento gástrico não costuma ser retardado.
O tratamento para esta condição combina ações clínicas e psiquiátricas. Naturalmente, na fase emética, dada a possibilidade de importante desidratação e desequilíbrio hidroeletrolítico, o sujeito precisa de atenção hospitalar. Algumas medicações de ação central podem ser aventadas nesta situação.
De qualquer forma, havendo a certeza, além de uma dúvida razoável, do diagnóstico da Síndrome de Hiperemese Canábica, é imprescindível que o portador cesse o consumo de maconha. Deixe-me repetir: o sujeito deve CESSAR o uso da maconha.
Comumente, nestes casos, existe grande dificuldade para o portador deixar de consumir THC. Assim, um tratamento psiquiátrico especializado deve compor o plano terapêutico.
É difícil, com apenas este relato, definir se de fato seu filho padece da Síndrome da Hiperemese Canábica, mesmo porque existe na sua pergunta uma palavra chamada “flagelo.” É fundamental que o médico psiquiatra que estiver acompanhando seu filho saiba exatamente ao que você está se referindo com esta palavra.
Boa sorte e não perca tempo! Seguramente, seu filho necessitará ser avaliado por um time de especialistas, incluindo psiquiatra e clínico especializado em doenças gastrintestinais (gastroenterologista).
Abaixo, recomendo a leitura de um manuscrito sobre o tema:
Simonetto DA, Oxentenko AS, Herman ML, Szostek JH. Cannabinoid Hyperemesis: A Case Series of 98 Patients. Mayo Clinic Proceedings. 2012;87(2):114-119.