por Rosa Farah – psicóloga do NPPI
Em palestra proferida em 1932, o psicoterapeuta suíço C. G. Jung afirmou: “O homem contemporâneo é apenas o mais recente fruto maduro na árvore da raça humana” . Esta observação nos permite deduzir que o ser humano ainda não assumiu sua forma definitiva: somos seres em contínua evolução, um processo que acontece de forma gradativa, paralela e integrada aos desenvolvimentos culturais e tecnológicos.
Conforme sabemos, a evolução humana iniciou-se há milênios em sincronia com a criação dos primeiros artefatos tecnológicos da cultura. Desde o surgimento das primeiras ferramentas rudimentares utilizadas pelo homem, a cultura e o próprio ser humano (seu corpo e sua consciência) vêm sendo moldados e estruturados gradualmente de maneira estreitamente inter-relacionada.
Mas segundo estudos evolucionistas, em certos momentos desse processo ocorreram “saltos evolutivos” geradores das súbitas transformações que nos tornaram seres diferenciados dos demais animais, especialmente ao adquirirmos a chamada “consciência racional”. O controle do fogo e das formas de manipulação dos metais, o manejo do plantio, a criação da roda e da escrita – entre outras “técnicas” – são alguns dos recursos que, progressivamente, permitiram ao homem atuar sobre seu meio gerando também – e simultaneamente – alterações da nossa própria conformação física e psíquica.
Foi assim que, ao longo de incontáveis milênios, o ser humano adquiriu a forma na qual nos autorreconhecemos nas eras mais recentes: como indivíduos capazes de se expressar por meio de suas habilidades físicas e psíquicas (para o bem e/ou para o mal…). De acordo com essa concepção, uma das características essenciais do ser humano seria a sua “unicidade”, ou seja: cada um de nós se constitui como uma personalidade – “um eu” – capaz de se autorreconhecer e ser reconhecido pelos demais por suas peculiaridades.
Múltiplos "eus" no ciberespaço
Mas, os mesmos estudos mencionados acima apontam também o fato do processo evolutivo humano estar passando atualmente por uma nova e intensa fase de aceleração especialmente sincronizada com as recentes criações derivadas das tecnologias informatizadas. E uma dessas derivações mais significativas seria a possibilidade da experimentação – pelo humano – das inusitadas vivências subjetivas no espaço da virtualidade. Por meio dessas vivências, o homem estaria pela primeira vez em sua longa história tendo a chance de explorar e expressar seus “múltiplos eus” no ciberespaço.
Não nos referimos aqui apenas às identidades virtuais criadas pelos internautas para se apresentarem nos sites de relacionamentos; nem apenas aos perfis ‘falsos’ utilizados eventualmente para burlar ou enganar deliberadamente os seus interlocutores. Referimo-nos também às possibilidades de autoexplorações oferecidas aos indivíduos que – no virtual – podem se redescobrir e reconhecer em si habilidades e características nunca antes expressas e por vezes até mesmo aparentemente contraditórias com a persona com a qual até então se apresentavam ao seu meio e à vida.
Alguns exemplos: O executivo sério e sisudo que se descobre tão hábil nos games quanto seus filhos adolescentes; o advogado que explora sua veia poético-literária ao dedicar-se à manutenção de um blog; a dona de casa que se torna fluente em um novo idioma ao comunicar-se via chats ou e-mails; o adolescente tímido que se surpreende com a eloquência que pode imprimir em sua comunicação escrita, entre outras muitas possibilidades.
Algumas características da comunicação e das formas de uso da Internet parecem favorecer esse tipo de experimentação: seu caráter lúdico e a condição de anonimato (real ou suposta) são algumas dessas condições. De todo modo, alguns pesquisadores da psicologia já se interessam por esse fenômeno e começam a pesquisar as “novas formas de estruturação da subjetividade” da era pós-moderna.
Segundo seus estudos, até pouco tempo uma pessoa seria considerada saudável e “equilibrada” tanto mais quanto mais se apresentasse ao seu meio como um indivíduo “coerente e previsível”. No entanto, na atualidade tal critério começa a ser questionado, com base especialmente na observação do comportamento dos internautas e a multiplicidade da personalidade passa a ser revista como uma nova forma de estruturação possível e “saudável”.
O tema é polêmico, e exige observações cuidadosas antes que possamos assumir opiniões conclusivas. Mas, a questão que se coloca é sem dúvida fascinante e pode instigar a nossa própria autoobservação: afinal, quantos ‘eus’ nos habitam ?
O título da palestra citada é “Todos temos duas almas” e foi publicada em “C. G. Jung: entrevistas e encontros” – uma compilação organizada por W. Mc Guire e R.F. Hull publicada pela editora Cultrix em São Paulo, 1982 (ps. 68/69) .