por Edson Toledo
A capacidade de contar história confere às pessoas suas qualidades próprias da condição humana. É no processo de narrativa humana que o indivíduo é simultaneamente o escritor, o escrito e o crítico literário.
No mito de Narciso, esse reconhece a si próprio no reflexo no lago como um objeto: "iste ego sum", este sou eu, exclama ele quando vê os lábios em movimento de sua imagem refletida, mas não ouve nenhuma fala.
Neste preciso momento, Narciso torna-se um observador. Se ele carregasse à mão outro espelho que o refletisse como um sujeito que está olhando para o lago, que o reflete como um objeto, então ele transformar-se-ia de observador em um narrador.
Dessa forma, com seres humanos, há mais do que uma narrativa. Há um narrador definido, alguém que se move entre a posição de sujeito e de objeto da construção da história. No processo de escrever suas histórias, os seres humanos com muita perícia esquivam-se de fazer uma distinção entre si mesmos como objetos e como sujeitos; eles transformam-se em projetos, ou seja, objetos num processo de contínuo, inesgotável e, de certa forma, imprevisível movimento.
Se pensarmos na hora da psicoterapia como uma reencarnação do encontro de Narciso com a sua própria imagem, como nas Metamorphoses de Ovídio que condensa, amolda e reorganiza os dados da tradição e do contexto, traduzindo-os em novos termos, segundo o padrão de sua linguagem, tal como acontece a um mito, que é sempre a tradução em novos termos de um outro mito, o cliente torna-se simultaneamente o observador, o observado e o narrador. Não raramente, entretanto, os clientes deixam-se capturar por um desses níveis de intencionalidade: observando a si próprios como objetos, observando-se a si mesmos como sujeitos ou idealmente, transcendendo a distinção sujeito-objeto e observando a si próprios como projetos.
Terapeuta ou crítico literário?
Como bem lembrou *Sarbin (1984) os clientes assim como os clínicos são inveterados criadores e contadores de histórias. A nossa função como terapeutas torna-se a mesma de um critico literário, ou seja, interpretamos a narrativa do cliente ao mesmo tempo em que coconstruimos ainda com ele outra história.
Essa visão da psicoterapia como uma narrativa não é nova, pois já era visível nos primeiros avanços teóricos e práticos no final do século dezenove. Freud ao descrever a metodologia terapêutica para o tratamento de sua paciente Anna O. reconheceu face à descoberta de que os sintomas histéricos desapareciam assim que a sua famosa cliente tornava-se capaz de coletar, reexperiênciar e verbalizar a narrativa do evento traumático. Ou seja, era a reconstrução da narrativa pelo cliente (chamada por ele de catarse) que criaria as condições necessárias para a cura terapêutica.
Ao afirmar que o "inconsciente é estruturado como uma linguagem", outro psicanalista, Jacques Lacan (1977), deu um novo impulso para a conceitualização do processo terapêutico como um fenômeno linguístico. Lacan compreendeu o fenômeno clínico como um texto que obedece a regras de um interjogo estrutural entre significantes e significados.
Entretanto foi **Skinner (1957) que indubitavelmente ao conceituar comportalmente o processo terapêutico que finalmente introduziu a possibilidade de operacionalizar o processo clinico em termos de um intercâmbio verbal. Porém, foi o psicólogo americano *** Carl Roger quem ajudou a abrir as portas para a análise linguística do texto terapêutico. As condições facilitadoras postuladas por Rogers, como necessárias e suficientes para a mudança terapêutica, suscitaram um entusiasmo pelo processo de pesquisa, focada na estrutura da narrativa terapêutica em meio às mais díspares perspectivas e teorias: em termos de atitudes, habilidades, mudanças tópicas, intenções, análise de tarefas e metáforas.
De uma perspectiva cognitiva e fenomenológica (****Rennie, 1992) demonstrou que no processo de contar uma história o cliente realiza algumas importantes funções cognitivas: endereçando a tensão associada a eventos passados; reexperenciando e compreendendo os sentimentos genuínos; discutindo tais sentimentos e gerando ideias que podem contribuir para a autocompreensão; desenvolvendo um senso de controle; e examinando o funcionamento dos seus processos privados. Em outras palavras, o cliente transforma-se em um narrador capaz de ser a história, de contar a história, de refletir sobre ela e reconstruí-la.
Em resumo, a psicoterapia é um cenário bastante adequado para o contar-histórias e o fazer-histórias. Não diferente de Narciso, os clientes começam a se reconhecer nos espelhos de suas histórias, tornando-se simultaneamente objetos, sujeitos e projetos deles mesmos.
* Theodore Roy Sarbin (1911-2005), psicólogo americano.
** Burrhus Frederic Skinner (1904-1990) psicólogo americano
*** Carl Ransom Rogers (1902-1987), psicólogo americano
**** David Rennie: psicólogo e atualmente é professor emérito na York University de Toronto/Canadá