por Regina Wielenska
Há muitas décadas, logo após os dinossauros serem extintos, fui contratada para dar aulas particulares a dois irmãos. Por questão de ética, não poderia fornecer detalhes. Da história real, farei uso de apenas um segmento, e que as brumas do tempo turvem nossa visão do resto.
O que importa, para a presente conversa, é que um dia chego para dar aula, e encontro os garotos, representantes de família abastada, a qual os mantinha sob os cuidados da governanta, largados no chão da sala, vendo TV. Naqueles tempos, tablet não existia!
Caderno e caneta, espalhados ao redor, sob o carpete branco e fofo, um refinado pedaço de nuvem. Em meio a tudo, uma calculadora eletrônica, coisa de camelô nos tempos atuais. Nos idos de 1977, ao contrário, era objeto de desejo, cobiçado por universitários, professores, profissionais cujo trabalho se beneficiaria com a tecnologia que começara a surgir, trazida a peso de ouro do exterior.
A calculadora servia para os garotos reduzirem o dever de matemática a dígitos num visor, diligentemente copiados no caderno. Pouco experiente, eu olhava perplexa para aquilo tudo. Disse aos meninos que recolhessem o material, para irmos à mesa, iniciar as aulas de Português e Inglês. A calculadora permaneceu no carpete. Pedi que a colocassem em lugar seguro, argumentei que facilmente seria esmigalhada por alguém distraído. Nem me arvorei a questionar o fundamento do uso que faziam da calculadora, apenas pedi que zelassem pelo objeto, cujo preço talvez superasse meses dos meus honorários.
A resposta deles, direta e plácida me assombrou: “Qual o problema? Se quebrar, minha mãe compra outra”. E provavelmente era verdade. Rapidamente entendi que os garotos eram ricos órfãos de pais vivos. Passar de ano era uma certeza, porque a mãe contratou aulas extras para aplacar um resquício de consciência levemente pesada. No final das contas, a escola aprovaria todos que participavam da atividade de pseudorrecuperação, a ocorrer pouco antes do exame final. Impossível dar cabo, em uma semana, dos inúmeros estragos pedagógicos e existenciais. Os pais terceirizavam o exercício da parentagem, quase nada convivendo com os meninos, exceto nas férias anuais à Disney e assemelhados.
Resumi em poucas palavras uma longa e pouco agradável história. Tenho curiosidade de saber que rumo tomou a vida desses garotos e torço para que a governanta tenha sido boa mãe postiça e botado os guris no rumo da vida sem atalhos. Afinal, era só o que lhes restava.
Por que razão revirar os baús da memória? Festas religiosas como Natal e *Chanuká se avizinham. Em muitas famílias, religiosas ou não, estamos no momento do ritual obrigatório de pedir presentes, ou comprá-los, ainda que para tal seja imolada a verba originalmente destinada a IPTU, material escolar, IPVA…
Sempre há o que pedir. Como resistir a tantos apelos? Para as famílias com menos posses, o slogan pode ser “compre hoje e pague em 90 dias com o dinheiro que provavelmente você não terá mais”. Entre os que têm de tudo e não se incomodam com a verba dedicada aos presentes, prevalece outro apelo: “confirme que você faz parte de um grupo muito especial, compre antes de todo mundo o megablaster whatever.
O difícil ato de estar presente
Ter ou não ter, essa ainda não é a questão. Dar presentes é bico, com ou sem crédito. Outra coisa é um pai ou mãe estarem no presente. Quero me referir ao dificílimo ato diário de acompanhar o desenvolvimento de um filho, de fazer real diferença na vida do guri. Tanto faz se é bola de gude ou videogame de última geração. Um pai ou mãe que brinquem com seus filhos são moedas rara, de valor inestimável. Comprar o brinquedo e sair de cena é coisa de meia hora. Passar no free shop e trazer outra calculadora igualmente simples. Sim, dá trabalho contratar babá, professora particular e pagar pela recuperação que aprovará seu filho, de modo a não perturbar as férias da família. Mas tanto esforço não resolve o real problema.
Amor, apego saudável, aprendizagem de valores sólidos, tudo isso se aprende convivendo, trocando experiências, olhares e cheiros. Partilhando o pão matutino e o prato de canja do jantar, conversando sobre o que o locutor da TV comentou, levando o cachorro pra dar volta no quarteirão e recolhendo seus dejetos. Dinheiro é bom, amor é melhor ainda. Mas educar amorosamente dá um trabalhão aos pais. Não basta seduzir os filhos com presentes, fazer ameaças de castigos descabidos como suposta fonte de controle, fazer negociatas em troca de um bom comportamento de fachada. Não dá para arrastar a criança numa sessão de compras pelo shopping center lotado e exigir dela que “fique boazinha porque mamãe precisa provar essa pilha de roupas agora porque durante a semana não vai dar tempo”.
Não adianta querer que a criança se alimente corretamente se os pais nem sentam à mesa, tampouco convidam as crianças a participarem do ritual de comprar e preparar os alimentos que serão servidos à família. O que caracteriza o estar no presente é a concreta disponibilidade, o interesse, o investimento de boa vontade naquela vida em formação.
E aí basta um pulo só para despencarmos no terceiro termo que escolhi para dar título à coluna: ser o presente. Um pai/mãe que for significativo, afetivo e efetivo no exercício do seu papel pode se preocupar menos com presentes materiais. Nada nessa vida substitui o carinho, a atenção na hora certa, o compromisso com valores maiores, esses e outros sinais da amorosa presença parental.
O melhor presente que alguém pode dar a uma criança, seja filho, neto, sobrinho ou aluno, é generosamente doar seu tempo, esforço, energia, ouvidos atentos e bom humor a essa criança. Não dá para disfarçar o brilho no olho do adulto que não se furta ao seu papel e também no da criança que se beneficiou do melhor dos presentes natalinos: o amor responsável e sólido de quem a acolheu, com a clara disposição de aprenderem e crescerem juntos.
Feliz natal aos que se dedicam a zelar pelas crianças, sem sequer perguntar em qual ventre foram concebidas.
*Chanuká, ou Festa das Luzes, é uma festa judaica comemorada por oito dias. Em hebraico, o termo significa consagrar, inaugurar e refere-se à purificação do Grande Templo de Jerusalém comemorando assim sua reconquista e a restauração das práticas judaicas após a guerra travada entre os helenistas e os macabeus.