por Roberto Goldkorn
Um dos livros que mais marcou a minha vida foi Ninguém Escreve ao Coronel de Gabriel Garcia Marques. Nesse pequeno romance um coronel reformado vivendo isolado num fim de mundo qualquer vivia de suas memórias e da expectativa de que lá da capital algum funcionário graduado lhe escrevesse reconhecendo seu valor e lhe convocando para receber esse reconhecimento (em resposta às suas muitas missivas). Mas ninguém respondia ao velho soldado e seus dias iam se arrastando nessa angústia de expectativas renovadas e frustrações idem. O carteiro nunca chegou.
Quando editei o primeiro livro sobre a vida de Roberto Carlos escrito por seu ex-mordomo, ainda vivíamos no regime militar, fomos processados pelo "rei" e massacrados por um aparato do poder econômico do cantor de uma forma avassaladora. O processo seguiu sob "segredo de Justiça" e ficamos praticamente amordaçados sem ter como divulgar as tantas injustiças e barbaridades que estavam acontecendo. Eram tempos pré- internet (1978/9) e foi para mim, pelo menos enlouquecedor, não poder gritar, comunicar ao mundo o que estava acontecendo. Me senti diversas vezes um náufrago preso numa ilha deserta no meio do nada.
A tecnologia trouxe finalmente às pessoas o seu desejo ancestral de comunicação global. O celular que tanto é criticado, a internet, as redes sociais que agora viraram alvo dos puristas e dos críticos, é o velho sonho de intercomunicação da humanidade. O silêncio, a solidão que a vida impunha a muitos, de uma maneira ou de outra, criavam uma angústia difusa, uma neurose coletiva (muitas vezes não detectada) que por ser coletiva não despontava como um grave problema humano. A incomunicabilidade, essa dificuldade de fazer sua voz chegar ao outro e de abrir seu ouvido para escutar o outro, é uma deficiência social que gera medo e insegurança.
Quando vejo as porcarias e barbaridades que circulam na internet, respiro fundo e penso: melhor assim.
Quando observo as pessoas de todos os cantos do mundo com a cabeça baixa digitando em seus aparelhos móveis, antes de me chatear como fazem os críticos do "abuso" do celular eu sorrio por dentro e penso: "Ela está espantando a sua solidão".
Pode ser que isso seja apenas uma grande ilusão, que na verdade continuamos sós, apesar do celular, apesar do Facebook, apesar do "zapzap". Pode ser, mas a velocidade da massificação com que esses instrumentos se disseminou, por si só, é sinal inequívoco de algum fenômeno gigantesco que precisa ser pensado.
Precisamos viver o sonho de estarmos conectados
A tecnologia da comunicação que ainda tem muita novidade guardada para nós, é um sonho antigo e persistente da humanidade. O sonho é de que precisamos estar conectados uns com os outros, não apenas com aqueles que estão fisicamente ao nosso lado, mas com os distantes e que não têm rosto. Precisamos falar, mostrar nossas habilidades, nossas fraquezas, expor nossas vísceras, as feiuras, a nossa inteligência real ou a que pensamos ter. Precisamos jogar no ciberespaço nossas ideias políticas, religiosas, futebolísticas, mesmo que essas ideias nem sejam nossas, isso pouco importa. Esse é o sonho antigo da humanidade: o de estarmos conectados, de não estarmos sozinhos, nem isolados. Precisamos ser vistos e ouvidos isso é profundamente humano.
Conheci um sujeito, aposentado por invalidez, cujo "trabalho" passou a ser de "caçador de câmeras de TV". Ele lia todos os jornais para saber onde iria haver um enterro de celebridade (onde a TV estaria) casamento, ou qualquer evento onde pudesse haver uma câmera de TV. Sua missão era ficar atrás do(a) repórter e dar um "tchauzinho". Em casa sua mulher estaria a postos gravando nas fitas VHS tudo e mais tarde a família se reunia para ver sua aparição. Missão cumprida. Esse é um caso extremo, quase patológico de alguém que não se conforma com o anonimato e o isolamento social.
A tecnologia da informação nos deu a sensação (ou a ilusão) de que podemos deixar de ser um "senhor ou senhora ninguém", ou como dizem os americanos um rosto na multidão. Temos um perfil no Facebook, temos uma varinha mágica que nos conecta com quem quisermos onde quer que estejamos.
Muleta: celular substitui função psicológica e social do cigarro
No passado muitas vezes percebi que as pessoas ao chegarem em algum local onde se sentiam "estrangeiros" imediatamente acendiam um cigarro. O cigarro agia como uma muleta, algo em que se apoiar, uma bomba química psicológica que parecia criar um travesseiro gigante que amortecesse a sua áspera estranheza.
Hoje ao invés do cigarro, imediatamente pegam o celular e começam a digitar: é a chupeta que nos dá aquela sensação reconfortante de não sermos estrangeiros em nossa própria Terra. Pegar o celular e saber que podemos ligar para alguém "íntimo" e que vamos ouvir uma voz conhecida do outro lado é como acender a luz no escuro. Além disso, podemos registrar o mundo, podemos estar diante das câmeras ou por trás delas gravando o momento e imortalizando-o. Esse é o milagre da tecnologia com todos os seus cacarecos e perfídias que sempre acompanham tudo que é humano.
Outro dia vi uma mulher que rezava compungidamente numa igreja com a cabeça baixa apoiada em um dos braços, me pareceu que estava chorando. Tive compaixão da pobre criatura. Minutos depois quando passei de volta ela ainda estava na posição do desespero, mas percebi com um pouco mais de atenção, que não era dor e sim mensagem de texto em seu smartphone. Talvez ela tenha ido até aquele lugar "sagrado" por causa da excelência do sinal. A solidão crônica/aguda leva a esses usos e abusos do celular.
Se o coronel Buendia do Gabriel Garcia Marques tivesse um celular, esse teria obtido algum tipo de resposta ou morreria tentando até acabar a bateria (ou seus créditos). Se ele tivesse Facebook, teria pelos menos uns cinco ou seis curtir em seu perfil quando estivesse acusando os poderosos de tê-lo esquecido.
A existência de médiuns, de profetas, de todo tipo de oráculo universalmente conhecido é um sinal dessa necessidade de romper o véu do isolamento, da nossa incapacidade de ver além do alcance de nosso olhos e ouvir além do alcance de nossos ouvidos. Hoje a internet abriga grande oráculos, e ela própria é um médium que nos conecta a universos ocultos e "misteriosos". A busca da magia que nos transforme em videntes e clariaudientes está sendo suprido pela tecnologia. Hoje podemos ver e ouvir o que está acontecendo a milhares de quilômetros de onde estamos, tirar dúvidas atrozes, influenciar pessoas à distância (para o bem ou para o mal), tudo isso o sonho dos antigos magos e magas.
O sonho ancestral e profundamente humano da conectividade está chegando. Isso não é garantia de vivermos melhor, de paz, ou de maior irmanação entre os humanos, pelo menos por enquanto.