por Roberto Goldkorn
Ele costumava voltar para casa com o paletó na mão, a gravata afrouxada, os ombros curvados e um ar de desalento, de prostração, mas o que me deixava confuso era perceber um sutil sorriso nos lábios que parecia invisível para os outros. Muitas vezes meu pai se referia a si mesmo como um "burro de carga" e muito mais tarde pude entender a curvatura de seus ombros ao ler Carlos Drummond de Andrade quando dizia "meus ombros suportam o mundo…"
Meu pai era um mártir, seu quase inefável sorriso que me parecia de ironia e crítica por nos encontrar em casa vendo TV, jogando, brincando enquanto ele se sacrificava na arena dos leões, era certamente de júbilo. Os mártires sentem um inegável prazer no exercício de seu martírio. Sentem-se realizando a missão do sacrifício, sabem-se os "escolhidos" como o foram no passado as vítimas de sacrifícios aos deuses – os eleitos.
Os mártires suportam o tranco da vida com a satisfação interna que transforma a dor em prazer num processo masoquista.
Um amigo suportou um casamento de vinte anos onde ele era escorraçado, desprezado e às vezes até humilhado pela mulher. Foi condenado por ela a passar muitos anos sem sexo e sem ter o direito de sequer tocá-la. Mas ele era forte, bem-sucedido na vida profissional (porque talvez a empresa enxergasse nele alguém capaz de fazer sacrifícios por ela), muito disciplinado, me dizia que era capaz de aguentar o tranco para não punir os filhos a quem amava acima de tudo.
Os mártires nem sempre sabem, mas estão na Terra em "missão"- precisam carregar o mundo sobre os ombros para que este continue bem, girando, com um polo em cima e outro em baixo… se largarem o seu mundo sabe-se lá o que poderia acontecer à humanidade, mais ainda a todo o equilíbrio cósmico.
Os mártires adoram atrair problemas e pessoas problemáticas para a sua vida, só para se colocar de novo em missão de ajudá-las ou pior de ter um trabalhão para consertar os estragos de sua passagem (e de tudo de ruim que trazem para a sua vida). Claro que essas serão incríveis oportunidades para exibir o espetáculo de seu sofrimento, de seu pungente sacrifício em público (ou para Deus que tudo vê).
Mas tenho outros amigos que quando chego em sua casa, já lá vêm com uma taça do mais fino cristal da melhor champanhe ou de um vinho daqueles que eu nunca poderia comprar. E lá vem histórias engraçadas, de aventuras em Nova Iorque e Paris, de amigos da alta roda, e dá-lhe risadas soltas e borbulhantes. "E a sua mulher?" pergunto. "Está bem obrigado. Comprei-lhe um belo apartamento, ela fica lá e eu aqui… no sossego." E dá-lhe risadas e muitos cheers. Logo temos de interromper a agradável e sempre prazerosa conversação, porque chegou o massagista coreano do meu amigo hedonista, e como vocês sabem "hora da massagem é sagrada".
Os hedonistas optaram pelo prazer, pelo próprio é claro. Não compreendem um mundo onde o gozo não seja a prioridade e se puderem proporcionar esse gozo aos que gravitam à sua volta o farão, porque isso garante mais risadas, mais piadas, mais aventuras regadas a mais champanhe.
Conheci um hedonista que dizia: "não me traga problemas, venha antes com a solução". Um grande hedonista que conheci disse aos seus auxiliares que iriam divulgar o seu Instituto de Yoga: "Não distribuam esse convite (que era perfumado) a pessoas que estiverem com aparência cansada ou de baixo astral. Só quero aqui dentro gente bonita e de bem com a vida. Não vamos trabalhar com doença mental e sim com saúde mental."
Mártires e hedonistas são dois extremos exemplos do comportamento e da personalidade dessa vasta galeria de espécimes do gênero humano. Não são nunca absolutos em sua tipicidade, mártires gostam de se divertir de vez em quando (não muito porque correm o risco de se sentirem culpados) e hedonistas podem fazer algum sacrifício, se isso ajudar a manter o champanhe borbulhando.
A maioria de nós não habita nesses extremos, mas abrigamos em nosso acervo espiritual mais ou menos de cada tipo. O que ambos têm em comum? O ego, forte, bem estruturado mas condicionado a alimentar-se com alimentos bem diferentes.
Ego, essa talvez seja a resposta para entendermos a razão dessas máscaras que encobrem a verdadeira face. Um se nutre do prazer, outro do sofrimento sacrificial. Mas ambos acabam ficando presos a esses papéis e a tudo que deles deriva. Hedonistas costumam ter uma face sombria e sofrida em sua vida que eles fazem de tudo para ocultar, porque não combina com a decoração festiva de sua casa. Já os mártires fazem questão da exibição pública ou semipública de suas cruzes e carmas agregados.
Olhando assim, obrigado pelo próprio exercício do escrever, vejo que herdei uma porcentagem mártir de meu pai que tento policiar quando me dou conta do script. Mas acabei desenvolvendo um trejeito hedonista que se regozija com o erguer dos brindes e com o lado "confete e serpentina" da vida.
Como todos que ficam habitando o meio dos caminhos de nossa vida, sofro secretamente com a culpa pelas alegrias, e me martirizo quando pago o preço/sofrimento ao atrair encrencas desnecessárias (às vezes faço os gestos do imbecil que se autochicoteia).
Não acredito que a vida seja um vale de lágrimas, onde nosso papel não poderia ser outro senão o de sofrer. Não acredito também que se possa passar a vida como se estivéssemos num baile interminável onde tudo é "só alegria". Acredito que ambos os papéis quando não são transcendidos pela Consciência são escravizadores e amarram o desenvolvimento espiritual do Ser.