Neurobiologia da identidade: já ouviu falar? 

O que é identidade? O que nos define é a forma como sentimos o mundo. Isso tem a ver com a consciência anoética; entenda

O cérebro por si só não fala, não ouve, não tem a capacidade de discernir o que é um homem, uma casa ou uma montanha. A experiência subjetiva, por sua vez, vai bem mais além.

Para dar descrições de nós mesmos, não precisamos apenas de um cérebro, precisamos de uma mente em condições de dar descrição de tudo o que ela apreende, pois a experiência subjetiva é encarnada. E dizer isso significa que a experiência subjetiva emerge e depende do funcionamento de um organismo complexo – o corpo humano – dotado de um recurso especial – o recurso à significação por meio da linguagem humana.

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A experiência subjetiva, ainda assim, também pode ser descrita como histórica, no sentido em que ela é fabricada de acordo com contextos sociais e culturais precisos por meio de descrições subjetivas.

Neurobiologia da identidade: o que nos define?

O que nos define é a forma como sentimos o mundo

Por outro ângulo, disse o neurologista André Palmini, a identidade é a percepção que cada pessoa tem do que é seu. Mais do que qualquer outra coisa, o que nos define é a forma como sentimos o mundo, não a nossa visão intelectual sobre ele. É por isso que, mesmo que os fatos estejam facilmente acessíveis para todas as pessoas, eles são compreendidos de forma distinta a partir das vivências de cada um.

Na explicação de Palmini, todos nós somos essencialmente afetivos na maneira como interpretamos as coisas do mundo. Exemplificando: Quando emitimos uma opinião, temos a ligação de sistemas emocionais (como nos sentimos diante do fato) que interagem com a forma como nosso organismo reagiu ao fato em questão (o que muda na homeostase). Isso se integra ao conjunto de experiências que formam a nossa bagagem de vida mental.

Construção da identidade a partir do afeto

A neuropsicanálise considera a construção da identidade a partir da afetividade, a forma primordial de subjetividade. Esses afetos arcaicos não têm conteúdo específico, são sensações. A isso, alguns autores chamam de consciência anoética* (atenção simples do mundo externo) (dispensa pensamento, intensamente afetiva). A consciência anoética é uma forma fundamental de experiência em primeira pessoa, baseada em vivências afetivas e sem racionalização.

“Essa é a primeira camada do self, a identidade em si. Os recém-nascidos vêm ao mundo com a capacidade de experimentar esses estados anoéticos como resultado de circuitos subcorticais que já estão maduros no nascimento. Porém, a racionalização sobre a identidade depende da corticalização (isso é, pensamento, raciocínio, funções cognitivas, processos de percepção sensorial) e das experiências individuais cognitivamente conscientes”, diz Palmini.

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Existe uma área do cérebro chamada de região peri-aqueductal que funciona como um eixo (hub), conectando o controle dos mecanismos regulatórios para manutenção da vida (homeostase) com as estruturas corticais. “Estudos mostram que quando pessoas com as quais nos importamos discordam de nós, a ativação cerebral diminui nas áreas de recompensa e aumenta nas áreas de aversão. Da mesma forma, quando pessoas que a gente valoriza concordam com aquilo que gostamos, áreas do nosso sistema de recompensa são ativadas”, explica o médico.

A grande questão é que as nossas convicções – que, como vimos, estão alicerçadas no nosso self e afetividade – levam a uma distorção comportamental e neural. “Isso significa que, no nosso cérebro, as evidências que confirmam as nossas opiniões são amplificadas e apagam aquelas que sugerem o contrário”, esclarece Palmini. Além disso, quanto maior a convicção que um o indivíduo tem, menos impacto neural terão as evidências contrárias ao que ele pensa. E vice-versa: quando há pouca convicção uma evidência contrária consegue ativar mais o cérebro e mudar a opinião inicial. É como se o cérebro estivesse sempre se autossabotando e ressignificando a realidade para não mudar de opinião. .

“Existem estudos evidenciando que alguns temas como política e religião têm a capacidade de se ligar à rede neural do nosso cérebro, se tornando parte da nossa percepção de identidade. O resultado disso é que somos mais capazes de refletir sobre questões como o meio ambiente do que sobre aquelas coisas que fazem parte do nosso equilíbrio (core), como as convicções políticas e a fé.

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* Noética (mente em grego) trata-se de uma disciplina que que estuda os fenômenos subjetivos da consciência, da mente, do espírito e da vida a partir do ponto de vista da ciência.

Coordenador do serviço de atendimento a pacientes com tricotilomania no PRO-AMITI/IPq FMUSP. Supervisor clínico na UNIP. Psicólogo pela Universidade Metodista. Mestre em ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Especialização em Terapia Cognitivo-comportamental pelo Ambulim/IPq FMUSP. Especialização em Psicologia Hospitalar pela UNISA