por Rosa Fonseca
Certa vez, trouxe uma gata de rua para casa. De tão faminta, a pobre não calculou o risco de atacar sem cerimônia o pote de ração do meu mimado gatinho. Ultrajado, defendeu sua comida com, literalmente, unhas e dentes. Era mais seguro ela tentar a sorte na selva; aquele alimento já tinha dono e ele não ficaria sentado assistindo a ela devorar tudo.
Nos primórdios da humanidade humanos comiam como gatos. Caçavam e comiam sós. Aos poucos, descobrimos as vantagens de viver em grupo, conseguindo cada vez mais e maiores presas. Passamos a comer como leões: caçávamos unidos, levávamos o abate para a comunidade e cada um, conforme sua preponderância físico-política no bando, pegava o pedaço que podia e recolhia-se ao seu canto solitário.
Comer junto é um dos mais notáveis traços da civilização. Na evolução, a comensalidade é um ato político. Dividir o prato é um ritual que sela o seguinte trato: você não me mata e eu não mato você (pelo menos a princípio).
Assim, clãs e tribos passam a dividir a mesa, selando laços mútuos de proteção. No mais, o alimento era partilhado com os Deuses, os grandes protetores – para quem as civilizações da Antiguidade produziam majestosos banquetes e oferendas.
Na Roma Antiga, o caráter político da comensalidade explicitou-se. Imperadores promoviam banquetes públicos, como protetores do povo. Distribuíam trigo aos carentes – uma espécie de bolsa-família – a fim de garantir o pão, vernáculo que tornou-se a metonímia-mor para comida (embora nós, brasileiros, pudéssemos perfeitamente substituir a oração por “a farinha nossa de cada dia nos dai hoje”).
Era hábito promover banquetes VIP regados a muito vinho para cidadãos poderosos. Nesses eventos, chamados de symposiums, homens comiam carne juntos; depois iam para uma sala e ingeriam álcool por horas, as quais debatiam sobre política e religião, defendendo sua supremacia na discussão e no poder. Bem, pelo menos na primeira hora. Na falta de futebol, o clássico “leões versus cristãos”, que lotaria o Coliseu no próximo domingo, incendiava discussões, assim como piadas e fofocas sobre a última orgia.
Terminavam bêbedos, mas confidentes. Estou certa de que conheço muito romano reencarnado. Do symposium vem a famosa expressão in vino véritas, que significa “com vinho, dirás a verdade” – e deflagra quão remota é a estratégia de embebedar o inimigo para fragilizar-lhe a guarda. Como in cerveja e in caipirinha também véritas, a técnica de chapar partidões e moçoilas para testar suas convicções continua válida. Sugiro que o próximo debate com candidatos à presidência suceda um churrasco altamente etílico, facilitando que digam o que de fato pensam.
França e o status de comer
Foi na França que comer ganhou status máximo. Às vésperas da Revolução Francesa, Maria Antonieta, glutona histórica, teve a brilhante ideia de promover um banquete público à la romana. Como os cofres da coroa fossem deficitários, juntou a nobreza para um ostensivo almoço a céu aberto, que a plebe só pôde assistir através de uma cortina, sob risco de bala. Como um baiano diria, o povo era a pipoca. Depois dessa, claro, a revolução pipocou. Assim como a cabeça da rainha.
O Terror durou pouco. Logo a burguesia lotou os restaurantes de Paris e até hoje, em qualquer lar sobre a Terra, famílias e amigos reúnem-se para comer e beber – característica que nos distingue como espécie. Falamos sobre política, religião, sexo e futebol e (por que não?) reunimo-nos para ver um programa de culinária ou o novo blockbuster sobre comida. Ver cozinhar e ver comer é tão estimulante ao apetite como cenas de sexo são estimulantes à libido. Comida é vida em sentido literal, espiritual, social, político, sexual.
Sessão gula: filmes sobre comida
Assim, termino sugerindo para seu jantar uma sessão-gula na tela da sua TV. Assisti a muitos filmes sobre comida e sempre que pedem indicação recomendo a tríade: Vatel, Festa de Babete e Como Água para Chocolate – películas para deglutir com os sentidos, a mente e a alma. Uma ode à onipresença da comida em nossas histórias, Tempero da Vida é um filme lindamente poético que não deixaria de destacar, embora particularmente ache a música turca irritante.
Aí tem os filmes sobre restaurante: Cuisine Americaine, Ratatouille, Simplesmente Martha (e o remake Sem Reservas), A Grande Noite, O Jantar; e uma imensa lista de romances água-com-açúcar como Chocolate, Férias da Minha Vida, Tomates Verdes Fritos, Jantar com Amigos, Garçonete, Meu Adorável Sonhador, Ardida como Pimenta, Feitiço do Coração, Julie & Julia, Caminhando nas Nuvens, Side Ways, Conto de Outono, Comer, Beber e Viver e Simplesmente Complicado. Fora comédias bizarras como A Comilança, Parente é Serpente, Estômago, Os Brutos também Comem Espaguete, O Cozinheiro, sua Mulher e sua Amante, Sabor da Paixão e O Segredo do Grão. Mas nesses, a comida fica com o Oscar de coadjuvante.
Texto: Rosa Fonseca – experiente chef de cozinha com diversas especializações em gastronomia. Mais informações sobre culinária, orientação dietética e serviço de personal chef: