O caroço e a polpa

Ter um ego é necessário, mas não um ego duro como um caroço. Então, quem sabe, a polpa, com sua salutar imprecisão e flexibilidade do caminho do meio, nos encaminhe a uma vida mais plena de escolhas.

Saber onde estamos e para onde vamos nos fornece as referências básicas para uma existência segura. Em geral, acreditamos que ter um foco é essencial para viver, pois assim podemos concentrar nossos esforços em um sentido específico. Essa concentração de energia otimiza nossos esforços que, sem unidade, poderiam se perder na vastidão de pequenas ocupações que terminariam sem sentido.

É isso, sem os “aquilos”

O problema com esse conjunto de referências que usamos como guias, é que eles se constroem por meio de negações de possibilidades que vamos descartando ao longo da vida.

Então, imagine que sendo um filósofo de mais de 50 anos, eu já tenha sepultado a possibilidade de ser um astronauta e pisar na lua. Fiz isso com minha vida porque decidi, lá atrás, ser filósofo (e viver na lua!). E essa escolha eliminou a possibilidade astronáutica e tantas outras que seria impossível enumerar aqui.

Cada escolha abre uma linha reta de possibilidades e fecha uma diversidade lateral de outras tantas. Existe aqui um processo de negação e eliminação de alternativas vinculada à ideia de uma existência segura e bem orientada, dotada de foco e construída com base na unificação de esforços e na otimização das ações que realizamos.

Assim, poderíamos falar em um processo de fechamento gradual de possibilidades, se considerarmos o que ocorre ao longo de uma vida construída sobre referências sólidas. O amadurecimento seria esse fenômeno de solidificação gradual da vida.

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Como fechamos opções na vida e morremos lentamente

Se generalizarmos, veremos que toda solidez existencial é um tipo de processo de negação e de fechamento de opções de vida. Assim, tudo indica que construir uma vida sólida e direcionada para objetivos bem claros, é um péssimo negócio, já que implica um empobrecimento gradual – que vai se ampliando na mesma proporção em que vamos escolhendo caminhos e abandonando vias alternativas. Isso seria como um assassinato gradual de experiências que poderíamos viver, logo um tipo lento de suicídio.

Apesar de ser um péssimo negócio, o contrário de uma vida sólida não parece muito promissor. Manter as possibilidades em aberto envolve não decidir-se por nada de particular, manter-se em uma permanente situação de indecisão em que as várias possibilidades permanecem em aberto.

Para continuar no mesmo exemplo, para manter aberta a possibilidade de ser astronauta, eu não poderia ter me tornado filósofo, nem qualquer outra coisa. A possibilidade de adotar várias modalidades de existência implica em não optar por nenhuma delas, mantendo-se em uma espécie de estado de indeterminação permanente, uma elevação que recusa qualquer vida concreta.

Não só isso não parece muito interessante porque me obrigaria a não ter nenhum valor consolidado – nem mesmo alguns muito básicos sobre o que seria certo ou errado – como também parece impossível. Para agir, para fazer coisas simples do dia a dia, necessito tomar decisões e escolher.

Incapacidade de decidir e agir na vida pode levar à depressão

Quando estamos incapacitados de tomar decisões e agir, isso configura um quadro patológico com características depressivas. Obviamente, refiro-me a um quadro crônico que incapacita o ser humano em função de um mergulho na negação pura e simples em que nada pesa mais do que nada.

A salutar imprecisão e flexibilidade do caminho do meio

Enfim, temos dois extremos que parecem indesejáveis: a segurança e a determinação rígida da vida, por um lado, e seu contrário: a insegurança e a indeterminação pura, pelo outro. Nenhum deles parece muito interessante se pensarmos em guiar nossas vidas inteiramente por um deles.

Talvez o melhor mesmo seja tentar algo intermediário (e nem tão preciso assim). Algo que nos permita algum grau de flexibilidade e de absorção de alternativas possíveis dentro de algum quadro estável de opções que fizemos e fazemos.

Sei que isso parece um tanto vago, mas não sou um profeta tão eficiente a ponto de formular uma regra de vida que qualquer um possa assumir como sua. Então, você terá que se contentar com essa generalidade: nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem tão rígido que não lhe permita respirar o ar puro das novas paisagens, nem tão flexível que lhe incapacite para contribuir com a vida dos outros seres humanos. Talvez aí pelo meio do caminho entre você e os outros, possa perceber que ter um ego é necessário, mas não um ego duro como um caroço. Em geral, a polpa que abraça o caroço tem um sabor melhor.

Ronie Alexsandro Teles da Silveira é professor de filosofia e trabalha na Universidade Federal do Sul da Bahia. Mais informações: https://roniefilosofia.wixsite.com/ronie

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