por Monica Aiub
No artigo anterior afirmei: “… o educador, em qualquer área, necessita conhecer não apenas os conteúdos de sua disciplina, não apenas o que os pensadores refletiram sobre a educação – o que já é muita coisa. Um educador precisa conhecer a si mesmo e ao universo que o rodeia, para que possa criar novas formas de vida e de atuação que não estejam encarceradas nas estruturas vigentes que o oprimem, angustiam ou ‘perturbam’. Mais que isso, precisa conhecer o outro, ou melhor, os outros com os quais convive e compartilha o mundo, construindo saberes, constituindo a si mesmo e as suas formas de vida.”
Diante de tal afirmação, o leitor questiona: “O autoconhecimento é indicado a todos, ou há situações em que poderá se transformar num problema? Há exceções para a afirmação que o educador necessita conhecer a si mesmo e ao mundo que o rodeia?”. Prossigo em diálogo com o leitor.
Um dos princípios fundamentais da filosofia clínica é a singularidade. Há pessoas para as quais “conhecer a si mesmo” é fundamental, para outras, como afirmo em outros textos (2004; 2010), há riscos; para terceiras, é algo que nem deve ser cogitado. Como saber?
Em primeiro lugar, tratando-se de um trabalho clínico, as questões a serem observadas dizem respeito à categoria Assunto – Imediato ou Último, isto é, a queixa, a questão que a pessoa leva para trabalhar no consultório de filosofia clínica. Se o Assunto for “conhecer a si mesma”, o primeiro passo é compreender o que significa, para aquela pessoa, “conhecer a si mesma”.
Para alguns pode significar encontrar os porquês de ser, pensar, sentir ou agir como é, pensa, sente ou age; para outros pode significar conhecer seu próprio corpo; para outros pode significar conhecer a casa onde habita; outros ainda considerarão conhecer a sociedade na qual vivem, e muitas outras possibilidades, inclusive a de não ter relação alguma com qualquer forma de conhecimento.
Caso este não seja o Assunto a ser tratado em clínica, há ainda a possibilidade de abordá-lo em outras duas situações: ser um dado padrão, ou seja, a pessoa apresenta a questão do autoconhecimento com regularidade observável em seu histórico; ou ser um dado atualizado, o que significa ser uma questão atual para a pessoa.
Se não se tratar do Assunto a ser trabalhado, não for um dado padrão ou atualizado presente na historicidade da pessoa, ainda sobrará outra possibilidade: ser trabalhado como um submodo, ou seja, ser um procedimento indicado, necessário para que a pessoa possa lidar com suas questões.
Com isso quero dizer que não há a defesa do autoconhecimento como algo desejável a todas as pessoas, nem como um princípio clínico, muito menos como indicado para todos os casos. Há situações em que é desnecessário, e outras, repito, em que é contraindicado.
Então o “Conhece-te a ti mesmo” socrático-platônico pode ser contraindicado? Em primeiro lugar é preciso compreender o significado da expressão, que dependendo do contexto poderá ganhar conotações completamente distintas. Por exemplo, ao tratar do “Conhece-te a ti mesmo”, segundo as análises de Foucault, em Hermenêutica do Sujeito, os antigos filósofos referiam-se em conhecer para cuidar, e cuidar de si significava cuidar da polis, da vida em sociedade. Hoje, muitos os que defendem o “conhece-te a ti mesmo” o fazem a partir de uma perspectiva individualista, onde o conhecer a si é conhecer sua subjetividade, suas necessidades individuais, muitas vezes desconectadas das necessidades de uma sociedade circundante.
Em segundo lugar, partindo desta distinção semântica, é preciso também observar as diferenças estruturais. Quando pesquisamos o significado de uma expressão como esta para diferentes partilhantes (pacientes), é possível encontrarmos a mesma expressão vinculada a diferentes tópicos da estrutura de pensamento, ou ainda vinculada a uma categoria ou a um submodo.
Apenas a título de exemplificação, o conhecer a si mesmo pode ser um Termo Agendado no Intelecto – alguém, em algum momento da história de vida da pessoa afirmou a importância de conhecer-se e, por motivos vários, o partilhante guardou essa informação como algo legítimo. Dentro deste mesmo tópico isto poderá significar, de fato, um dirigir-se ao conhecimento de si, mas também pode significar uma expressão que não ultrapassa os limites da enunciação. Ele prega a ideia, defende, mas não pratica.
Para outra pessoa, pode se tratar do tópico “O que acha de si mesmo”. Então, conhecer a si mesma é uma característica própria, ela o faz porque assim pode aperfeiçoar-se a cada dia, etc. Contudo, como diz o nome, “o que acha de si mesmo” pode ser simplesmente uma opinião. Nem sempre o que uma pessoa acha de si mesma corresponde àquilo que ela é; outras vezes, corresponde exatamente ao que ela é.
Para uma terceira pessoa, pode estar atrelado ao tópico Busca, constituindo numa constante busca por autoconhecimento. Em outros casos, pode ser apenas um aspecto do tópico Epistemologia, em outros um dado do tópico Axiologia, e assim sucessivamente. Em outras palavras, pode caber em muitos e diferentes tópicos, ou como qualquer outro conteúdo, pode nem sequer existir.
Desta forma, repito, não é possível defender o autoconhecimento como algo imprescindível a todos, nem como indicado em todos os casos. Cada caso será estudado em especial.
Educador brasileiro
Tratemos agora da questão do educador. No referido texto, eu falava do educador, exercendo seu papel. Mais especificamente, eu falava do educador na realidade brasileira, ou para ser mais precisa, nas realidades, uma vez que temos diferentes realidades educacionais em nosso país. Todavia, temos diretrizes, parâmetros, que são gerais, e que direcionam o agir de todos e de cada um dos educadores brasileiros. Em alguns estados e municípios mais, em outros menos, dependendo das políticas educacionais regionais.
Quando me referi ao conhecimento de si e do mundo que o rodeia como elemento fundamental para sua atuação, considerei a partir do contexto de nossas discussões nos Encontros de Filosofia e Educação. Sempre que nos reunimos com professores para abordar tais questões – e isso se repetiu em nosso XIII Encontro Nacional de Filosofia Clínica, na mesa temática Filosofia Clínica e Educação – são comuns as alusões às dificuldades cotidianas do professor, cansado, com excesso de alunos por sala de aula, com excesso de aulas semanais – devido à má remuneração, levando-o à excessiva carga horária de trabalho para poder cumprir com as exigências materiais de sobrevivência, com excesso de cobranças burocráticas, com programas e teorias previamente determinados, que impedem a autonomia e o livre pensar, etc. Em outras palavras, são comuns as queixas sobre a quase impossibilidade em se desenvolver um trabalho efetivo na maior parte das vezes.
Também é comum o discurso da medicalização dos alunos: depressivos ou hiperativos, o problema às vezes é resolvido no consultório psiquiátrico, numa tentativa de modelar os cérebros ao invés de transformar a sociedade em que vivemos, como muito bem exemplifica Steven Rose, em O cérebro no século XXI.
A questão das políticas públicas também é presente, especialmente com seus instrumentos externos de avaliação por mensurações nem sempre condizentes com os objetivos pedagógicos traçados, inclusive, em nossa legislação. A consideração de índices estatísticos, tomando como referência um dado padrão que não é, necessariamente, condizente com o ponto de partida existente na realidade.
Enfim, são muitos os elementos que surgem em tais discussões e que apontam para uma espécie de “armadilha”, na qual o educador parece não ter saída, exceto sucumbir, desistir, deprimir, e quem sabe também resolver sua situação no consultório psiquiátrico, com medicação e, talvez, um feliz afastamento por licença médica.
Diante de tais queixas que surgem nas discussões em nossos encontros, propusemos o estudo de alguns filósofos que leem tais estruturas e tentam rompê-las. O texto no qual trago a questão do conhecimento de si traz como referência Michel Foucault, suas análises de tais estruturas, mostrando como funcionam os dispositivos de segurança da Biopolítica, que parecem nos dar total liberdade, autonomia para a ação, quando na verdade traçam, por um processo por ele denominado de “normalização”, as formas desejáveis, aceitáveis, e na maior parte das vezes impostas, para a condução de nossos modos de existência.
Em contraposição a esta forma de gerir as condutas das populações, Foucault propõe a construção de uma contraconduta, pautada no conhecimento de si e do mundo circundante, ou seja, para conseguir construir uma contraconduta, para não ser conduzido desta forma, é preciso que cada cidadão tenha conhecimento das estruturas nas quais se encontra, para que consiga identificar os elementos, as formas de articulação e as brechas para a construção de contracondutas. Neste sentido, o conhecer a si mesmo é conhecer a polis, ou seja, conhecer as estruturas sociais nas quais se insere, é conhecer para cuidar, conhecer para governar.
Com isto quero dizer que todo educador deve conhecer a si mesmo e, principalmente, conhecer as estruturas da sociedade na qual vive?
Diria como Aristóteles sobre o filosofar, que até para decidir se queremos ou não filosofar, necessitamos filosofar; o educador, para decidir sobre ser ou não governado desta maneira, precisa conhecer as formas pelas quais é governado. Caso contrário, não terá elementos para decidir, e ficará preso na “armadilha conceitual” educacional que lhe foi imposta. Todavia, como já foi especificado no texto Armadilhas Conceituais (veja aqui), nem toda armadilha é ruim. Há armadilhas que desejamos manter, que são o motivo de nossa existência. Mas como avaliá-las se não as considerarmos? Se não nos dermos conta de sua existência?
Se o educador considerar seu papel como o de um reprodutor de conteúdos, como alguém que aplica uma fórmula e esqueceu para que serve, o que ela significa, como foi criada, e em que implica utilizá-la, talvez ele não necessite conhecer o mundo a sua volta; talvez, menos ainda, ele precise conhecer a si mesmo; talvez seja perder tempo preocupar-se em conhecer as pessoas com as quais trabalha: os educandos.
Contudo, se o educador considerar a construção dos saberes como construção de modos de vida e estiver preocupado com as formas que escolhemos para conduzir nossa existência; o conhecimento, de si, do mundo e do outro será, ouso dizer, imprescindível à sua prática.
Referências bibliográficas:
AIUB, M. Como ler filosofia clínica: Prática da autonomia do pensamento. São Paulo: Paulus, 2010.
_____. Para entender filosofia clínica: O apaixonante exercício do filosofar. Rio de Janeiro: WAK, 2004.
FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
_____. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
_____. O governo de si e dos outros. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
ROSE, S. O cérebro no século XXI: Como entender, manipular e desenvolver a mente. Rio de Janeiro: Globo, 2006.