por Roberto Goldkorn
“Portanto, repetir inúmeras vezes algum comportamento (gesto) ou frase pode ser o portão de entrada para um transe transpessoal ou para o mundo perturbador da loucura”
Quando cursei a faculdade de psicologia, havia uma moça que, segundo relatos (fofocas), havia pirado durante o curso. Alguns diziam que ela tinha se apaixonado por um professor e não havia sido correspondida. Mesmo tendo sido “desmatriculada” ela ia a faculdade com frequência e quase sempre ficava na biblioteca “estudando”.
Numa dessas vezes a observei em sua tarefa. Ela pegava algumas notas de dinheiro, as estendia sobre a mesa, passava a mão sobre cada uma delas dezenas de vezes como se quisesse desamassar, e repetia, repetia, repetia o gesto. Fiquei fascinado com aquele comportamento, pois na mesma época estava estudando os fatores que desencadeavam o transe místico nas religiões. O principal desencadeador eram comportamentos repetitivos.
Lembro-me que em minhas aulas sobre o funcionamento dos hemisférios cerebrais costumava dar um exemplo que fazia rir, mas também incomodava aos alunos. Perguntava-lhes se eu pedisse que pegassem um copo de água para mim, isso seria entendido e talvez atendido.
Todos respondiam que sim. Aí eu perguntava por quê? Eles diziam que eu estava falando algo lógico (eu não estava pedindo um copo de ácido ou do mais caro Champanhe), numa língua que todos compreendiam, com uma sintaxe correta, além de falar num tom de voz audível e sem gaguejar. Mas então eu perguntava como se sentiriam se a pergunta fosse a seguinte: Vocês pegam um copo de água para mim? Vocês pegam um copo de água para mim? Vocês pegam um copo de água para mim? Vocês pegam um copo de água para mim? E continuava enchendo o saco deles.
No começo todos riam, mas se eu continuasse a repetir instalava-se um certo mal-estar na sala. A explicação é simples: os arquivos e programas da fala (e da compreensão da lógica/cultura, da línguistica, semântica, etc) estão instalados no hemisfério esquerdo do cérebro. Mas se algum ruído inviabilizar esse reconhecimento pelos programas instalados, ocorre uma inibição da resposta e o “outro” hemisfério, o direito entra em ação.
Por mais que as pesquisas da neurociência tenham avançado, o “cérebro” direito ainda guarda muitos mistérios. O que os cientistas sabem é que lá se dá a percepção espacial ampla, a criatividade artística, a sensibilidade (e quem sabe o talento) para as artes, música, pintura etc.), talvez a intuição e outros talentos não dependentes da educação e cultura.
Já a minha “turma” acredita localizar-se no hemisfério direito a sede física da mediunidade, a percepção extrassensorial, a paranormalidade e os fenômenos psicoespirituais, como o transe ou êxtase religioso por exemplo.
Como na imensa maioria das pessoas o que prevalece no cotidiano é a vida de relação (os comportamentos ditados social e culturalmente), quem controla a função a maior parte do tempo é o hemisfério esquerdo. Os programas instalados no hemisfério esquerdo desde a infância são veiculados através dos sentidos que são sete: olfato, audição, visão, tato, paladar, vestibular(regulação do equilíbrio vertical, localizado no vestíbulo-ouvido interno) e sinestésico (regula a intensidade da força muscular, localizado nos terminais tendíneos.
Lembram da piada do louco que se dizia curado ao qual o diretor do manicômio dava um sorvete que ele enfiava na testa?) Quando impomos a qualquer desses sentidos uma tarefa repetitiva (inútil) estamos mandando um “vírus” para os terminais cognitivos do hemisfério esquerdo. Ao chegar lá, não havendo programas de reconhecimento do que é “ilógico”, ocorre a inibição da atuação. Como se o hemisfério esquerdo dissesse: “Ôpa isso aqui não é comigo não, vou sair fora!”
A hipnose também se utiliza desses recursos de estímulos repetitivos, para afastar momentaneamente o nosso “guardião” da moral e dos bons costumes e trazer a ativa o nosso cérebro “doidinho”. Por isso que na umbanda, no candomblé e no sufismo se usa a dança circular para induzir estados de transe (girar em torno de um eixo e em torno de si mesmo contraria a ordem do sentido vestibular que está programado a nos fazer andar ou correr para frente). Velas acesas, orações e cânticos repetidas muitas vezes, cheiro de incenso são outros recursos para acuar nossos sentidos básicos e alterar a dominância hemisferial.
Quando a criança pede aos pais que repitam mais uma vez, a mesma história ou brincadeira, estão dentro da normalidade uma vez que o seu cérebro lógico, racional ainda não está construído.
Assim voltando à minha ex-colega de faculdade do início, quando o hemisfério esquerdo é afetado de forma permanente (ou semi), os comportamentos repetitivos “ilógicos” são uma consequência lógica e agem como reforçadores da “loucura”. Por isso que artistas, loucos e místicos sempre foram vistos com desconfiança pela sociedade regida pelo cérebro esquerdo. Da mesma forma todos os “canhotos” eram considerados perigosos por serem guiados pelo hemisfério direito.
Várias conhecidas minhas que estudaram em colégio de freiras e eram canhotas, tinham seus braços esquerdos presos por uma tipoia e não raro apanhavam com a régua na mão esquerda sempre que teimavam em ser gauche na vida. Portanto, repetir inúmeras vezes algum comportamento (gesto) ou frase pode ser o portão de entrada para um transe transpessoal ou para o mundo perturbador da loucura.
Olhando de uma plataforma mais elevada, todos os nossos comportamentos que se repetem imutáveis ao longo de um tempo podem ser vistos como sintomas de uma loucura light ou de estados de hipnose do qual somos reféns e nem nos damos conta. O caminho para a lucidez/liberdade é a autoobservação. A partir daí podemos romper as correntes que nos mantêm prisioneiros de qualquer script de ferro, por mais bem-sucedido que seja (por enquanto).