O negociável e o inegociável

por Luís César Ebraico

MIGUEL: — Você está me achando chato?

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LC: — Posso?

MIGUEL: — Não. Claro que não?

LC: — Por quê?

MIGUEL: — Ué, porque não! Eu não me sinto bem com a idéia de que você está me achando chato!

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LC: — E você acha que essa análise irá sobreviver se você quiser optar por só ter, durante as sessões, idéias cujo conteúdo faz você se sentir bem?

MIGUEL: — Não vai dar certo, né?

LC: — Não, não vai.

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MIGUEL: — Mas eu vim aqui para me sentir bem, não para me sentir mal.

LC: — Você sabe o que acontece, quando você processa verbalmente uma emoção desagradável?

MIGUEL: — Não.

LC: — Você sente alívio, paz. Esse é o tipo de PRAZER que se pode legitimamente querer obter de uma análise. Mas imagino que você também não saiba qual o tipo de DESPRAZER provocado por você tentar evitar o contato com uma emoção ou sentimento desagradável.

MIGUEL: — É, não sei.

LC: — Angústia, ansiedade e stress, que, por vezes, se transmudam em depressão. É disso que você pode se livrar tendo coragem de enunciar e processar verbalmente vivências desagradáveis. Já está disposto a enfrentar o incômodo de pensar que eu estou pensando que você é um chato?

MIGUEL: — Tá. Já. Me convenceu. Libero você para me achar chato.

LC: — Obrigado.

MIGUEL: — De nada.

LC: — Antes de você continuar, quero acrecentar alguns comentários ao que conversamos.

MIGUEL: — Tudo bem.

LC: — Quero assinalar dois pontos. O primeiro tem a ver com o que você acabou de falar: Você me “liberou” para lhe achar chato. É interessante saber que esse seu comentário diz respeito a uma das formas em que pode ser descrita a cura, qual seja, dizendo que o paciente idealmente curado, ou idealmente saudável, é aquele que liberou o terapeuta para pensar o que ele quiser. Isso porque, uma vez que o paciente libera o terapeuta, ele, paciente, sai liberado e não mais precisa ficar na situação de se impedir de expressar algo, pensando: “Não, se eu disser isso, ele vai pensar aquilo e eu NÃO QUERO QUE ELE PENSE ASSIM”.

Na verdade, ao querer paralisar a mente do terapeuta, o tiro sai pela culatra, e é o paciente que fica paralisado. Certamente você adquiriu um pouco mais de liberdade para os seus pensamentos por me haver liberado para achá-lo chato. O segundo ponto que quero assinalar é que nossa cultura tem o pernicioso hábito de propor que certas emoções e sentimentos NÃO DEVEM SER SENTIDOS, que sentir raiva é “feio”, sentir ciúme é “feio”, sentir inveja é “feio” etc., etc. O que é importante não é sentir ou deixar de sentir ciúme, inveja ou raiva, o importante é saber se, ao experimentar esses sentimentos – ou quaisquer outros – é você que tem ciúme, ou O CIÚME QUE TEM VOCÊ, se é você que tem inveja, ou A INVEJA QUE TEM VOCÊ, se é você que tem a raiva, ou A RAIVA QUE TEM VOCÊ.

Em suma: se, ao experimentar essas emoções, você é avassalado por elas, que passam a comandar sua maneira de agir, ou se você consegue agir da maneira mais adequada para o contexto em que você está inserido, a despeito de as estar experimentando. Aqui, por exemplo, em análise, a conduta adequada é você falar o que lhe está vindo à cabeça. Se você pensa, por exemplo, “O doutor deve estar me achando um chato, ENTÃO VOU MUDAR DE ASSUNTO” é o medo de ser considerado um chato que está mandando em você. Se você pensa que eu posso estar achando você um chato, mas considera, por exemplo, “Bem, isso não é agradável, mas quem mandou ele resolver ser analista e mandar eu dizer o que vem à minha cabeça? Vou dizer a ele que estou com medo que ele me ache um chato e, em seguida, continuar a dizer o que estava dizendo”, então é você que está mandando no medo, não ele que está mandando em você.

MIGUEL: — Caramba, gostei de entender isso! Acho que agora vai ser mais fácil fazer análise.

LC: — Legal.

Para finalizar, aproveitemos o diálogo acima para esclarecer um princípio da técnica freudiana cuja compreensão é freqüentemente distorcida. Refiro-me ao princípio de que o analista deve ser NEUTRO.

Comecemos pelas distorções. A maior delas é confundir “neutralidade” com “indiferença”, com “distância emocional”. É um absurdo que um analista se proponha a meta de NÃO SE IMPORTAR com o que acontece a seu paciente. E, como treinei vários estudantes e profissionais na técnica freudiana, sei que vários deles começam sua atividade clínica fazendo se propondo tal absurdo. Aqui, a meta é aquela que apontamos no fim de nosso diálogo com Miguel: o analista pode se dar ao direito de experimentar toda e qualquer vivência que o paciente desperte nele, mas cumpre ELE TENHA a vivência, não que ELA O TENHA. Ou seja, se uma emoção MANDA EM MIM, se, por exemplo, me estou condoendo com a dor de um paciente, posso ser levado a agir de forma a parar seu sofrimento – para parar o meu! – em um momento em que o tecnicamente indicado seria permitir que ele experimentasse sua dor até o fim; se eu, não minhas emoções, MANDO EM MIM, sou capaz de continuar agindo da maneira tecnicamente correta a despeito de manter-me capaz de reconhecer que a dor do paciente está-me atingindo também. A meta da neutralidade, portanto, nada tem a ver com indiferença.

Posto isso, podemos chegar a uma definição adequada de neutralidade: “é a capacidade de ouvir de receber de forma IGUALMENTE NATURAL todo o tipo de comunicação do paciente, agrade ela, ou não, ao analista”.

Neutralidade, portanto, significa não haver um tipo de TRATAMENTO PREFERENCIAL, em que as comunicações do paciente que agradam ao analista são bem acolhidas e as que não agradam são objeto de rejeição. Talvez, de forma sintética, pudéssemos definir a neutralidade psicanalítica como:

IMPARCIALIDADE DE ESCUTA.