por Katty Zúñiga – psicóloga componente do NPPI
A disseminação gratuita do ódio vem explodindo nas redes sociais, de maneira cada vez mais frequente e com mais força. Por não se tratarem de fenômenos esporádicos, é algo que merece atenção e cuidado.
Até em momentos que deveriam ser de pura alegria, isso tem acontecido. É o caso, por exemplo, da acalorada discussão em torno dos blocos de Carnaval em São Paulo nesse ano, que puseram em choque grupos que adoram a ideia dos blocos na cidade e os que são totalmente contrários à ocupação das ruas pela folia. O debate saudável sobre o convívio civilizado entre ambos deu espaço a uma onda de ofensas e intolerância às ideias opostas.
Temos também o caso do falecimento de Marisa Leticia, esposa do ex-presidente Lula. Poucas horas após sua morte, correram boatos maldosos sobre o ocorrido para fragilizar ainda mais a reputação do ex-presidente, com objetivos políticos. Esse material, cuidadosamente construído com mentiras fáceis de serem assimiladas por quem não gosta dele, caiu nas graças dos algoritmos das redes sociais, que ajudaram na sua rápida disseminação. E as pessoas embarcaram nessa onda, destilando ainda mais sua raiva.
Outro caso interessante é o do novo presidente dos EUA, Donald Trump. Mesmo antes de assumir, ele já usava as redes sociais para distribuir a sua visão de mundo, provocando muito mais que debates sobre suas polêmicas declarações: ele deliberadamente coloca grupos opostos em choque, chegando até a criar incidentes diplomáticos apenas um mês depois de ter assumido a nova cadeira. Isso tem provocando revolta e frustração entre as pessoas que compõem esses grupos, até mesmo provocando grande ansiedade nos cidadãos, principalmente nos estrangeiros em terras estadunidenses.
A minha questão é: o que leva uma pessoa se deixar influenciar por esses sentimentos de raiva e de ódio? As redes sociais, assim como a tecnologia digital como um todo, são ferramentas importantes para o desenvolvimento do ser humano. Um uso consciente e saudável gera possibilidades e melhor qualidade de vida. Da mesma forma, seu mau uso pode provocar o contrário: depressão, violência, racismo, inveja, exibicionismo e todo tipo de intolerância entre as pessoas.
É verdade que estamos atravessando um momento difícil, com crise financeira, política e social. Até a natureza vem nos mostrando que ela está diferente. E isso é uma pressão enorme, que pode deixar qualquer um doente, se não se cuidar.
São mudanças drásticas, que poderiam indicar que precisamos aprender algo com tudo isso. Ou a olhar o melhor lado da situação para superar as dificuldades e dar valor ao que pensamos, respeitando diferenças, para fazermos o que é bom para cada um de nós e para o outro. Então por que vemos tanto confronto, tanta insatisfação e principalmente ódio?
Há alguns anos, o anonimato e uma suposta impunidade no meio digital eram usados pelas pessoas que queriam prejudicar outros. Hoje é aterrorizante perceber que isso não é mais necessário: as pessoas fazem seus ataques, abertamente, com seus perfis pessoais. As proporções enormes disso podem repercutir no emocional de qualquer um, tanto dos agressores quanto das vítimas. Isso pode chegar a impactar uma população inteira, a ponto de deixar uma sociedade doente. Tanto é assim que a OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou, na semana passada, que o Brasil é o quinto pais do mundo com mais pessoas deprimidas e o pais da América Latina com mais transtornos de ansiedade. Isso é assustador!
Por que tudo isso está acontecendo com essa magnitude agora?
A raiva e o ódio são sentimentos que podem ser provocados por um ambiente hostil, onde a pessoa foi ameaçada na sua autoestima de alguma maneira. Isso faz com que ela revide com fúria, com ódio, até com violência.
Segundo Daniel Goleman, autor do livro “Inteligência Emocional”, a raiva surge a partir da sensação de que a autoestima e o sentimento de dignidade própria estão em perigo, devido a algum tratamento injusto ou grosseiro, insulto ou humilhação sofrida, ou ainda quando um objetivo considerado importante é frustrado.
Esses sentimentos obviamente sempre existiram. Mas agora eles encontraram nas redes sociais, na tecnologia digital, aliados para se expandir. Isso acontece por conta principalmente dos algoritmos de relevância. Eles são componentes das redes sociais responsáveis por exibir, para cada usuário individualmente, conteúdos que ele goste. Isso acontece por intrincadas combinações do que cada pessoa lê, publica, visita, compra, com quem se relaciona e o que todos os seus amigos também fazem. O objetivo é fazer com que as pessoas sintam prazer enquanto estão online, pois, caso contrário, simplesmente deixariam de usar essa rede social. O problema dessa busca incessante pelo prazer é que esses algoritmos nos brindam não apenas com coisas que gostamos, mas também com conteúdos que reforçam a maneira como pensamos, inclusive os nossos preconceitos e ódios. Dessa forma, diante de alguma coisa que diz exatamente o mesmo que nós sentimos ou pensamos, por mais absurdo e errado que seja, embarcamos nessa onda e ajudamos a disseminar ainda mais tal ódio.
O roteiro do último episódio da terceira temporada da série Black Mirror é construído justamente sobre esse tema. Sem entrar em detalhes para não “dar spoiler”, um psicopata usa essa combinação de ódio com tecnologia para manipular a população e atingir seu objetivo nefasto. No final ele consegue exatamente o que ele queria. Apesar de ser uma obra de ficção, essa combinação usada na série é exatamente o que já acontece agora nas redes sociais.
Isto tudo está nos desumanizando. Como disse recentemente o historiador Leandro Karnal em seu perfil no Facebook, tripudiar sobre a morte de uma pessoa, por mais que seja um inimigo, tira qualquer traço de razão que eventualmente se tenha. “Trazer à tona torna pública sua fraqueza, sua desumanidade. Acima de tudo, mostra que este inimigo tinha razão ao dizer que você era desequilibrado”.
Vale a pena, então, pensar bem antes de destilar o ódio nas redes sociais. Temos que ter consciência de que a tecnologia está ao nosso alcance sempre, mas cabe unicamente a nós usá-la para o bem ou para o mal. Ceder facilmente a sentimentos negativos pode nos colocar como um peão de um jogo que pode ir além dos nossos valores, interesses, nossos desejos, apenas movidos pela combinação desses sentimentos negativos e a tecnologia.