por Fátima Fontes
"É verdade que a política é a arte do possível, mas ela também tem que ser a arte de sonhar o impossível. O que todos esses movimentos estão mostrando é que nós precisamos de utopias, pensar formas para um mundo melhor, uma sociedade mais fraterna".
Trecho da entrevista concedida pelo Professor de Direito José Garcez Ghirardi em 15 de junho de 2013, a um jornal paulistano.
Outra vez nos encontramos neste espaço reflexivo e como as relações interpessoais são o nosso 'mote central', acompanhamos o 'viver com o outro' em nossas grandes cidades, sobretudo, como fonte de inspiração.
Na semana passada todos nós nos sentimos impactados com as cenas de lutas sociais travadas em muitos centros urbanos brasileiros e as forças policiais de 'ordenação social'. Pois é, a sensação que tive é que acordamos, de forma atabalhoada de certo 'torpor existencial', ou seja: fomos sacudidos de nossos sofás que nos acolhem após dias de cansaços e lutas individuais, com cenas de pessoas como nós, sobretudo de jovens, que saindo às ruas mostraram seus e nossos descontentamentos juntos.
Porém fica a indagação, em mim e em muitos: assistimos, ou participamos de um momento de reivindicação e protesto ao que podemos chamar de momento do 'não' mobilizado pelo que os analistas sociais nomeiam de 'instant mob': mobilizações sociais feitas pelas redes sociais para gerar uma ação de impacto e rapidamente se dissolver, mas e quanto ao momento do 'sim'? Ao que estamos realmente nos comprometendo 'com' e 'a partir de' tudo isso? Esse será o nosso alvo nesta reflexão.
A necessidade de afirmarmos nossa indignação: o momento 'não'
Vivemos e produzimos um mundo relacional que está instalado em uma realidade local e mundial de 'viver para consumir'. E tudo isso é tão esmagador de uma vida que viabilize esse tal 'plano de interminável consumo', que pouco sobra de tempo para nos mirarmos em espaços privados e menos ainda em espaços sociais mais amplos.
Com isso, desenvolvemos um cotidiano 'entorpecidos', quase automatizados e só nos lembramos que existe 'o outro' quando algo parece atingir em alto grau nosso espaço pessoal de desconforto. Foi o que serviu de estopim para as manifestações da semana passada a partir do aumento dos preços de passagens urbanas na cidade de São Paulo: há muito tempo já estamos como classes mais favorecidas socialmente, reclamando do 'excesso de carros, das altas taxas governamentais cobradas, da falta de lugares para estacionar os carros cada vez maiores ou menores, caso você tenha mais dinheiro ainda, pois os 'smart cars' são pequenos e caríssimos, e outras insatisfações', e como usuários do precário transporte público, vimos nos acotovelando e esmagando em frota de transporte público que só se reduz e produz desde a madrugada o 'distress', ou seja o mal estresse nosso de cada dia, que vem adoecendo o corpo, as emoções e as relações de nosso exército de trabalhadores, usuários dos transportes coletivos.
Diante de tantas insatisfações, se iniciam os gritos individuais que ao se juntarem produzem palavras de ordem nas marchas por sérias e urgentes mudanças. Mas como toda a trama relacional política e cidadã são complexas e envolvem diferentes interesses, vários jogos são tramados e executados, e muita crueldade é plantada nos espaços de reivindicações coletivas por envolvidos nessa tessitura social. Citemos inicialmente aqueles que para manterem suas 'vitórias políticas', normalmente seladas em grandes alianças entre os candidatos ao exercício político e seus 'patrocinadores', podem na 'surdina' estimular e até subsidiar as ações violentas.
Mas para além desses, podem engrossar o cordão da destruição no 'não' a 'alienação reivindicadora' de muitos estudantes, que deixariam de cabelos em pé, muitos professores da boa sociologia e das lutas de classe, e que facilmente, apoiados no desconhecimento dos espaços de luta em espaços de diálogos e de não violência, tornam-se reféns de ações destrutivas gratuitas e vandalismos.
Por fim, encontraremos também entre os violentos aquele bom número de pessoas, jovens e adultos que 'perderam a esperança' em qualquer possibilidade de mudança, que pertencem o mais das vezes ao exército de desempregados, demitidos, alijados dos espaços de produção e por isso da cadeia de consumo, que perecem não ter mais nada a perder e têm também sua sombra humana ampliada nesses momentos.
Porém os 'destruidores no não', não podem nem devem ser confundidos com os muitos homens, mulheres e jovens que em movimento de não violência, vão para as ruas protestar e dizer que há um mundo menos violento e injusto possível.
Essa luta, contudo precisa ser continuada através da descoberta da possibilidade de pertença a grupos de pessoas que se organizam e lutam, com pautas possíveis, por um espaço de dialogia política e social. Não confundamos isto somente com espaços político partidários, que podem até exigir de seus membros militância e fidelidade às suas propostas reivindicadoras por mudanças sociais, mas que às vezes possuem também um lado de manipulação e interesses sombrios invisíveis nelas embutidos. O mais importante é não sejamos ingênuos, e o grande desafio é que nos tornemos sempre vigilantes daquilo no qual nos engajamos.
A continuidade das lutas por mudanças: o momento 'sim'
Gosto sempre de pensar o mundo social pelas questões maiores, aquelas nomeadas pelos estudiosos de 'macrossocialidades' e que tratei na parte inicial do artigo, assim como muito me sino impelida a falar das questões de nosso 'quintal e jardins relacionais', que nomeiam de microssocialidades.
Fico então aqui a matutar sobre as 'utopias dos jardins e quintais', nelas incluo o cuidar constante de nossas vidas e das pessoas que nos cercam mais diretamente e em nosso viver cotidiano: nossos parentes, amigos, companheiros de trabalhos, vizinhos, alunos, pares, pelas pessoas que nos ajudam a viver como os motoristas, os empregados domésticos, os porteiros, enfim os envolvidos na extensa malha de serviços prestados para se viver numa grande cidade. Bem como aquele com quem também convivemos como citadinos: as pessoas que moram em nossas ruas, aquelas com quem tomamos o transporte, aquelas que usam as mesmas praças que nós, enfim esse outro que me espelha como humano.
E aí o chamado e desafios não são muito diferentes daqueles postos pelas grandes utopias, precisamos urgentemente lutar com nossas rudezas, grosserias e perda das virtudes humanas. Temos nos embrutecido relacionalmente e nem mais olhamos para o outro: se estamos em casa olhamos para as telas: computadores, tevês, tablets, smartphones, etc…; se andamos pelas ruas, o fazemos apressadamente e com fones grudados em nossos ouvidos, para sequer abrirmos a chance do outro se dirigir a nós. Nos nossos laços mais íntimos insistimos em manter o mundo das queixas, das reclamações, dando sempre o reforço ao que não está bom, ao que falta ao outro, esquecemos de elogiar e desqualificamos o que muitas vezes é feito.
Precisamos também dar um basta a este estado de 'desafeição relacional', e atentarmos para as pequenas e grandes virtudes, como uma saudação, um sorriso, um abraço, o interesse pelo que se passa com o outro, e uma aprendizagem continuada de elogiar e qualificar o outro. Enfim, fica aqui registrado também o anúncio de que outro mundo relacional mais humanamente generoso é possível, onde as humilhações morais que decorrem de um exercício de distanciamento e desqualificação afetiva do outro cessem e em seu lugar, possamos mirar o outro como alguém que espelha meu bem e meu mal, ficando assim mais possível o encontro humano, produto da racionalidade e afetividade humana, grande sinal de que a barbárie humana pode ser combatida e neutralizada.
E para terminar: que o 'áporo' nos guie
Precisamos de instrumentos para lidar com a concretude e desafios da realidade, e para isso criamos mediadores que nos auxiliem: a religião; as artes; a poesia, a música e a dança, dentre outros, e disso tem se utilizado os artistas, os pintores (como a jovem artista plástica Mariana Serri, com a qual recalibrei minhas forças, embevecida com suas telas na exposição Áporo, na Galeria Marília Razuk, em São Paulo); poetas, e outros e que permite também que nos apoiemos em criações artísticas para finalizar nossas reflexões.
Desta vez me inspirei no poema de Carlos Drummond de Andrade (como também o fez a Mariana Serri para sua exposição, em 2013) que nos idos de 1945, em pleno sofrimento imposto pelo Estado Novo, Getuliano, foi capaz de escrever um verso, no qual os três sentidos da palavra áporo parecem: um inseto que cava; a situação de não se ter uma saída e um tipo de orquídea verde, e que ele nos inspire em nossas micro e macroutopias.
ÁPORO
Carlos Drummond de Andrade
In: A Rosa do Povo
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e mistério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.