Renato Russo (RR) era muito ligado à astrologia. Uma tendência mística que contrasta com seu ceticismo religioso, mas converge com a busca e valorização do sagrado. Um mapa para se localizar no meio do caos só pode ajudar se cremos em alguma outra força além da desordem e do acaso.
O amor pode ser um princípio cosmológico e é assim que aparece em diversas narrativas sobre a origem do universo e sua ordenação. É neste sentido de tensão entre vida e morte que amor aparece na canção Perfeição da Legião Urbana. Neste texto vou descrever essa relação em termos pessoais, políticos e proféticos/míticos.
O álbum O Descobrimento do Brasil foi lançado em novembro de 1993, depois que Renato Russo passou por um período de desintoxicação e resolveu enfrentar publicamente o drama da dependência química. O livro Só por hoje e para sempre: diário de um recomeço (Companhia das Letras, 2015) registram os 29 dias que o vocalista da Legião Urbana passou em recuperação na clínica de reabilitação Vila Serena. A canção Vinte e nove que abre o álbum O Descobrimento do Brasil descreve simbolicamente esse ciclo de autodescoberta, como sendo o período de “retorno de Saturno” que marca a crise do aniversário de 29 anos, quando este planeta volta ao lugar em estava quando do nascimento da pessoa: o que significa que ela deve amadurecer e começar/assumir a vida adulta.
Reconectar a versões positivas de si mesmo
Mais do que tentar vencer o vício em álcool e drogas, RR procurava se reconectar, se religar a versões positivas de si mesmo, que lhe dessem autoestima e força para seguir trabalhando de modo produtivo e criativo. Renato já sabia ser soropositivo e sentia a angústia de aceitar que seu ex-namorado provavelmente estaria próximo da morte. Imaginava fugas dessa realidade, finais felizes, vidas alternativas, precisava se reinventar. Como uma espécie de epígrafe do livro Só por hoje temos os versos:
Eu sou a Morte, eu
Sou o seu Eu maligno,
eu sou o que você
quis, por não ver mais
a Luz e a Verdade.
Mas você finalmente
provou ser mais forte –
nuca atingi seu trabalho,
sua criatividade ou
seu amor pelos seus.
(RUSSO, 2015, p. 13)
A Morte com letras maiúsculas precisa ser encarada como forma de reconciliação e novo começo. RR tinha esta mesma avaliação em relação ao Brasil, país que havia apostado euforicamente na democracia como a solução de todos os problemas, eleito um dirigente que se portava como um modelo épico prometendo trazer a solução para o país com gestos fortes e de autoridade, dinamismo e juventude. Mas essa promessa de redenção autoritária se revelou um fracasso enorme, com uma crise econômica política e cultural que desafiava a possibilidade de cantar o futuro deste país. Mas este grande fracasso seria sintoma do passado escravagista, da herança autoritária da Ditadura militar, que ressurgia como furúnculos em um corpo em recuperação. O Brasil precisava encarar o seu autoritarismo e se desintoxicar para sobreviver como nação.
O fantasma da morte
Neste sentido, a canção La mainson dieu, do álbum póstumo Uma outra estação, descreve a Morte nos rondando como um fantasma, quando buscamos comprar o Amor e a Amizade ou mergulhamos em relações destrutivas, mas também como a memória traumática e violenta do Brasil que não deveria ser esquecida:
Eu sou
Eu sou a pátria que lhe esqueceu
O carrasco que lhe torturou
O general que lhe arrancou os olhos
O sangue inocente
De todos os desaparecidos
O choque elétrico e os gritos
Parem por favor, isso dói
Eu sou
(…)
Eu sou a lembrança do terror
De uma revolução de merda
De generais e de um exército de merda
Não nunca poderemos esquecer
Nem devemos perdoar
Eu não anistiei ninguém.
Na canção A Fonte de O Descobrimento do Brasil, temos um mergulho no Hades/Inferno como um convite para beber da fonte que traz a memória e a verdade (como aletheia, o não esquecimento), encarar de frente os problemas de si mesmo e do país, celebrar a vida e superar os instintos destrutivos. A Fonte é uma canção que precisa ser identificada como “de amor”, já que este aqui surge como uma força de intensificação da vida contrapondo-se a Morte.
Perfeição e o mito de Eros e Thanatos, Perséphone e Hades
Em Perfeição temos a celebração ritual de enterro das maldades e iniquidades que fazem parte do nosso cotidiano como nação, nas relações interpessoais, com a natureza etc. Mas celebramos também certa estrutura mítica que avém de “Eros e Thanatos, Perséphone e Hades”. Enquanto os dois primeiros deuses personificam o amor e a morte como princípios contrapostos que habitariam todas as coisas, a narrativa de Persephone e Hades organiza a transição cíclica entre o que morre e o que (re)nasce.
Persephone, filha de Zeus e de Deméter, possuía grande beleza o que fazia ser cobiçada por diversos deuses, no entanto sua mãe excedia em cuidados buscando preservá-la criança e filha, afastando-a de todos os homens. No entanto, Hades, o deus do mundo inferior no qual habitam os mortos, flechado por Eros, procurou pedir a mão de Persephone para Zeus. O pai sabendo da predileção de Deméter, não aceitou, nem recusou o pedido. Diante do impasse, Hades resolveu raptar Persephone e levá-la para o seu reino. Quando Persephone passeava na beira de um rio e tentou colher uma flor, uma fenda se abriu no chão e ela caiu para dentro do mundo dos mortos. Deméter ouviu os gritos da filha, mas não sabia o que lhe havia ocorrido. Passou nove dias padecendo desse sofrimento até que foi informada do sequestro empreendido por Hades com a cumplicidade silenciosa de Zeus. Deméter revoltada, decide abandonar sua função como a deusa da agricultura, impedindo que os campos brotassem e dessem alimento para a humanidade. A crise faz Zeus interceder junto a Hades, pedindo a devolução de Persephone.
No entanto, a deusa raptada havia se alimentado com sementes de romã oferecidas por Hades, o que a obrigava para sempre a retornar ao reino subterrâneo. Quando Deméter reencontrou Persephone se encheu de alegria e com isso os campos floresceram, mas logo teve que aceitar a volta da filha ao reino de Hades, num acordo em que numa metade do ano a filha ficaria com a mãe e na outra metade com o marido. Na primavera e verão, Persephone e Deméter estão juntas; no Outono e no Inverno a deusa raptada retorna ao Hades para reinar junto ao seu esposo.
Capa do álbum ‘Descobrimento do Brasil’
A capa de o Descobrimento do Brasil traz Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá vestidos com roupas que remetem ao período medieval em uma paisagem cheia de muitas flores. No clipe da canção Perfeição e no encarte do álbum, as flores também se multiplicam, como a promessa de uma primavera que estaria chegando, com a possibilidade de um novo começo, um novo ciclo. Essa profecia fecha a canção Perfeição, num tom que nos remete aos versos finais da Carta de Ano Novo do poeta inglês W. H. Auden:
Caímos na dança, cometemos
o velho erro ridívulo e obsceno,
mas sempre existem alguns como você,
que perdoam, ajudam, nos dão luz.
O trabalho e o sonho, cada dia,
vivemos nossa vida em companhia
e o amor – o mais frágil – ilumina
a cidade e a cova do leão,
a viagem dos jovens, o mundo com sua ira.
Leia a interpretação da letra ‘Antes das Seis’ da Legião Urbana