Introdução
“Em um sistema de concorrência desenfreada, a frieza e a dureza tornam-se a norma. A competição, sejam quais forem os meios utilizados, é considerada válida, e os perdedores são deixados de lado. Os indivíduos que temem o confronto, não usam procedimentos diretos para obter o poder. Eles manipulam o outro de maneira sub-reptícia ou sádica, a fim de obter sua submissão. Realçam sua própria imagem desqualificando a do outro. Em tal contexto, um indivíduo ávido de poder pode utilizar a confusão do ambiente para desestruturar, com total impunidade, seus rivais potenciais.”. (Marie-France Hirigoyen, no livro: Assédio Moral: a violência perversa no cotidiano. 9ª ed. RJ: Bertrand Brasil, 2007. pp. 93-94).
Tenho refletido bastante sobre a questão das violências em nosso mundo relacional, e procuro falar amplamente dela em nossa coluna.
Mas, sempre há algo a dizer e algo a fazer, quando a violência moral, ou o assédio moral “dorme conosco”, ou seja, se infiltra, sobretudo, em nossos laços de intimidade.
E, como o trabalho destruidor do assédio moral ocorre de maneira discreta e quase invisível, por palavras, olhares subentendidos, intentamos nesta reflexão colocar ainda mais “tinta nesse invisível”, como caminho de conscientização, desvelamento e transformação.
Para combater o abuso moral, o melhor antídoto é cultivar o hábito de manter laços amorosos
Proporemos, como de hábito, o antídoto: verdadeiros laços amorosos, é do que precisamos, para combater essa espiral mortífera promovida pela situação abusiva relacional.
O que é o viver “abusivamente”? Conhecendo para transformar.
A questão do abuso emocional é muito grave, e promove mais ‘assassinato psíquico’, do que talvez, as armas de fogo. Naturalmente, não há estatísticas sobre essa forma de violência, mas a sua ação, só é conhecida por quem a vive e por cuidadores de diferentes áreas do socorro emocional, e pode-se dizer que sua amplitude talvez seja bem maior que a do COVID-19, ou Coronavírus.
Mas, o que dá essa amplitude ao abuso emocional? Para mim, isso deve-se ao fato de que envolve toda a cadeia de relacionamento interpessoais, passando então pela família, escola, organizações e instituições.
Como tão bem colocou a autora da epígrafe que abre nosso texto, há peculiaridades que permeiam as práticas relacionais abusivas. Vou elencar aqui, algumas delas.
Peculiaridades das práticas relacionais abusivas
Iniciamos pelo jogo de poder embutido em tais práticas: as pessoas que são abusivas, têm sérias dificuldades de abrir suas opiniões e promover confrontos legítimos com o que ela discorda. Ela “finge” que está tudo bem, se mostra concordante e solícita, mas por trás é maquiavélica e astuta, e tramará, com diferentes fios, o reino da “discórdia”.
Isso já torna, a tarefa de “desvelamento” das tramas de assédio, uma tarefa de Hércules, pois, como vamos “desmascarar” pessoas que parecem bacanas e solícitas?
De maneira muito “invisível” há a luta de uma “personalidade narcisista”, que quer se apropriar da felicidade do outro, e se isso não é possível, torna-se quase uma obsessão destruir a pessoa que considera feliz.
O caminho mais usualmente utilizado, nessa “guerra” é a utilização das “falhas” do outro, que são sempre denunciadas, ampliadas e, em muitos casos, criadas. Há uma satisfação mórbida em humilhar e punir a pessoa “invejada”.
A marca do abusador
A “frieza” e a “dureza” do abusador, é outra marca indelével. Aí podemos entrar no reino das relações de intimidade, iniciemos pelas relações pais e filhos, sobretudo, os pequenos, onde a linha da submissão, do uso do poder e da humilhação do outro, ganham a “tutela da legitimidade”, pois é preciso “desentortar o pepino”, “quebrar as personalidades opositoras”, como definiu tão bem o filósofo francês Michael Foucault: “docilizar é preciso”.
Reflito, se não é essa, a grande causa de suicídios entre crianças, adolescentes e adultos jovens, nos tempos atuais. A maioria foi “abandonada” ou “quebrada pelas violências cotidianas”, tornando-se inabilitados para a luta do viver: não sabem se opor, não sabem dialogar, aprenderam, o mais das vezes a “temer” as pessoas que os cercam.
Passam a “desistir” de si mesmos, de seus desejos, já que ouvem de seus pais, educadores e “sábios influenciadores de plantão”, abusivamente, que criança que realiza desejos, se tornará o “fraco de amanhã”. Grande equívoco, a criança e o ser humano, continuamente exposto às privações, em seus desejos, se tornam violentos para consigo (suicídios ativos e passivos) e para com o outro, serão os abusadores emocionais de alguém no futuro. E é assim que se constrói a inquebrável espiral do abuso moral.
Claro, que todos esses elementos estão presentes em relações marido/mulher; namorados; “amigos”; em relações de trabalho organizacionais ou institucionais, onde “usar e abusar” faz parte do jogo; em relações escolares em que não há uma educação para a circulação e o debate de ideias, mas o uso da força e do temor para “ensinar”; e em relações mediadas pela religiosidade, em que a transcendência é usada para “reprimir”, “homogeneizar o rebanho dos membros” e atingir, muitas vezes, metas nada “divinas” de ambições e exercícios narcisistas de poder; assim como se apresentam em certas “categorias profissionais”, cursos de formação , agremiações etc.
Como alimentarmos vínculos “verdadeiramente amorosos”?
Me encanto, e utilizo, como interlocução em meus estudos acadêmicos, a noção biológica do amar, apresentada pelo biólogo chileno Humberto Maturana, para quem “amar é estar e deixar o outro em harmonia, em paz”, não havendo “ameaça” ao bom funcionamento de nenhuma das partes.
Precisamos deixar de sermos frios e duros em nossos vínculos
Entendo ser esse o verdadeiro “soro antiofídico, contra o veneno do abuso moral”. Precisamos nos “desarmar”, há um longo caminho cotidiano a ser trilhado, onde a grande bússola orientadora é o “saber perder, saber abrir mão do poder de manipular”, é o deixar de ser “frio” e “duro” nos vínculos.
O que ocorre em um vínculo verdadeiramente amoroso?
Estar à vontade diante do outro é o grande alvo de vínculos “verdadeiramente amorosos”, não há o que provar, ou o que vencer, e sim o que agregar, o que somar aos aprendizados relacionais, que são sempre inacabados e incompletos.
Nesse novo “campo relacional”, são bem-vindos os “cuidados com o pensar, com o sentir, com o falar e com o agir” pessoal de cada um. O grande exercício, fundamental, em tempos de relacionamentos virtualizados, é o milenar ensinamento de “se colocar no lugar do outro”: como eu me sentiria se lesse isso, se ouvisse isso, ou se soubesse de algo dessa maneira?
E assim, vamos “aprumando” nossas velas, aos bons ventos inter-relacionais, rumo ao bom combate às violências, sobretudo às impetradas no formato de abuso e assédio moral.
E para terminar…
Hoje, ouvi uma doce canção entoada pelo cantor Bobby McFerrin, intitulada: “Good Lovin”, na qual ele diz que tudo o que precisamos é de verdadeiros amores, também creio nisso, e desejo ter compartilhado essas ideias com vocês. E que os “bons ventos” de vínculos não abusivos soprem sobre nós.
Assista ao clipe de Good Lovin’ e abaixo a tradução da letra:
Good Lovin’
eu estava me sentindo… tão ruim
Perguntei ao meu médico de família exatamente o que eu tinha
eu disse: “Doutor
Agora você pode me dizer
Qual é meu mal?”
Ele disse: “Sim, sim”
Sim, de fato, tudo o que eu, eu realmente preciso
(é um bom amor)
agora Gimmy que bom, de bom amor
Tudo que eu preciso é amar
‘Bom amor’, baby.
Agora querida, por favor, aperte-me bem apertado…
Você não quer que seu querido fique bem?
Eu disse Baby… (Baby) … agora é com certeza…
Eu tenho a febre, sim “você tem a cura”
Todo mundo, ” sim, sim, sim”
Sim, de fato, tudo o que eu realmente preciso
(é um bom amor ‘)