por Fátima Fontes
Introdução
“O que se impregna na criança é o casal parental, a maneira pela qual os dois se associam, a conjugação de seus mundos psíquicos, e não causalidades lineares. Assim opera o triângulo (pai, mãe, criança), organizando ambientes sensoriais e atuados, cooperativos, estressados, colusivos (dois contra um) ou desorganizados.”
Dr. Boris Cyrulnik, neuropsiquiatra e psicanalista francês. Livro: Os Patinhos Feios, São Paulo: Editora Martins Fontes, p. 61.
Olá, queridos e queridas leitores desta coluna, outra vez nos encontramos para refletir sobre Nós & Nossos Vínculos. Desta vez, inspirada na nossa permanente onda de insatisfação relacional, que tanta intolerância e dissabores têm gerado em nosso mundo, resolvi focar mais uma vez na grande responsabilidade que temos diante de nossas escolhas.
Penso que já é mais que tempo de sairmos de nossos eternizados papéis de vítimas do outro, de sofredores pelo que o outro nos fez, e procurarmos andar por caminhos mais construtivos e transformadores de nossos pesares.
Seguindo uma linguagem bem popular desejo contribuir para que vocês leitores, possam fazer de seus limões relacionais, deliciosas limonadas suíças, ok?! Para seu próprio bem, para o bem de seus filhos, caso os tenham e como coconstrutores de uma sociedade permeada por uma cultura de paz.
Em que bases estamos nos associando?
Aproveitarei a importante contribuição do neuropsicólogo e psicanalista francês Boris Cyrulnik para compreendermos a importância dos vínculos que vivemos, na construção de quem somos, do que sentimos e de como aprendemos a dar respostas diante de nossas dificuldades relacionais.
Como coloquei na epígrafe que abre essa reflexão, a criança em seus primeiros dezoito meses de vida, vai assimilar, via seus cuidadores, seus pais ou substitutos, seu repertório de sentimentos e bases para suas ações.
Daí surge nosso primeiro desafio para a coconstrução de um mundo melhor: parece que estamos nos associando como casais e como parceiros em geral, de maneira rasa, líquida, como diria o pensador e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o que muito tem colaborado para as respostas inadequadas dadas aos conflitos que vão aparecendo no cotidiano das famílias e das relações humanas.
Como que “possuídos” por uma idealização de pessoas, que devem se manter jovens, belas, compreensivas, amorosas, perfeitas e que deveriam ser exatamente como nós queríamos que elas fossem, temos presenciado os desrespeitos que tendem a se multiplicar em todas as relações, o que provoca o caos e desorganização dos afetos. Os filhos que experimentam esse cenário familiar, se sentirão inseguros e perdidos em seu próprio repertório pessoal de sentimentos e ações, visto que precisavam de seus cuidadores em espaço cooperativo e funcional para aprenderem a agir desta forma.
E se recuamos mais um pouco, nas tramas intergeracionais, poderemos também localizar esses pais de hoje, como filhos que também experimentaram confusão e caos em suas primeiras relações.
Mas e agora? Como poderemos pensar em alternativas para os nossos desencontros? E sigo, com a mesma proposta já apresentada anteriormente em outros textos da coluna (veja aqui), só a partir da consciência de nossa impossibilidade e dificuldades individuais, poderemos construir novos rumos que nos permitirão desenvolver as potências resolutivas que carregamos.
Mas isso exige um exercício dificílimo em nossos dias atuais, visto que teremos que “baixar a guarda”, vencermos a nossa arrogância, nosso excessivo narcisismo e nos confrontarmos com uma imagem de nós mesmos, menos bela e mais sombria, maldosa e frágil, que precisa inicialmente de nossa atenção e cuidados pessoais para se iluminar e se transformar.
Na sequência da proposta “indecente” para os dias atuais, precisaremos também deixar nosso orgulho, tão bem cultivado, de lado, e reconhecermos que precisamos do outro, que não somos uma ilha e que, para vencermos nossas limitações e avançarmos em nossas possibilidades, precisaremos da presença, real e verdadeira do outro.
O árduo caminho das boas escolhas
Como vimos nesse último parágrafo, precisamos do outro para crescer e sermos melhores pessoas. Mas paradoxalmente, é pela rejeição e abandono do outro, que nos perdemos de nós mesmos, e de nossos mundos.
Surge assim, na metáfora do limão e da limonada que estou utilizando neste texto, o tal “momento limão, ácido e corrosivo”, aquela hora em que o outro diz por palavras ou atos que já não nos ama, não nos tolera como parceiros, revela que perdeu a admiração e que tudo em nós o incomoda.
Os sentimentos associados a este momento são todos de uma alta carga de tristeza, de ira, de revolta e de ódio. Parece que nosso lado sombrio é convidado a passar e queremos destruir aquele que nos destrói, o que nos instala e às nossas relações, num patológico redemoinho de rancores e ressentimentos.
Será que ficamos fadados a viver, assim, existências azedas, poliqueixosas e infelizes? Trago uma boa nova: existem sempre muitas outras possibilidades para o viver humano.
Filme “Abismo Prateado” traz reflexão sobre sentimento de rejeição
A mim, me encanta o contato com a arte, como espelho do viver, e a arte cinematográfica, muito me inspira. Assistindo ao filme “Abismo Prateado”, drama brasileiro, lançado em 2013 dirigido por Karim Aïnouz e roteirizado por Beatriz Bracher, encontrei importantes elementos para essa reflexão e para acompanharmos, mediados pelo roteiro, algumas dessas possibilidades diante da rejeição..
Na trama muito bem construída e interpretada encontramos uma mulher chamada Violeta (Alessandra Negrini), e um homem, o Nassir (Thiago Martins), abandonados por seus cônjuges.
Todavia, os caminhos que cada um deles toma para enfrentar essa, que é uma das maiores tragédias humanas, foram absolutamente distintos e muito nos contam sobre nós e nossas escolhas.
A escolha de Violeta, que era dentista e pertencia a uma classe social média alta, é parecida com aquela que muitas vezes tomamos: ela enlouquece, quer negar a dor que vive, fugindo dessa desastrosa realidade. Isso incluiu ações como automutilação, tentativa de suicídio, deixar o filho e a enteada pré-adolescentes sozinhos à noite, em casa e tentar viajar para outra cidade atrás do homem que lhe abandonara.
Ela não conseguiu viajar, mas comprou um bilhete aéreo para o dia seguinte, mas não voltou para casa, se alojou num hotel e ali ficava ouvindo repetidamente a gravação do recado da morte, ou seja, seu ex-marido dizendo que não a amava e que ia embora. Na sequência, tomou banho e saiu a ermo pelas ruas do centro da cidade, entrou numa boate, dançou freneticamente, voltou a caminhar pelas ruas, e acompanhamos em muitos momentos, sua tentativa de se jogar na frente dos carros e no profundo abismo prateado do mar do Rio de Janeiro.
Quando se preparava para voltar ao aeroporto, Violeta entra num banheiro e conhece a Bel (Gabi Pereira), uma menina triste de 10 anos, que lhe pede para que não saia logo do banheiro, pois ela não queria fazer coco sozinha, e o seu pai, o Nassir não podia entrar no banheiro das mulheres. Indagada sobre onde estava a mãe, a menina disse que não sabia, mas que tinha muita saudade da mãe e queria estar com ela. Mas não podia falar isso para o pai, pois ele ficava ainda mais triste.
Entra em cena, assim nosso “outro modo de operar nas tragédias”, com o personagem pai da menina Bel, o Nassir, um pintor de parede. Ele muito desconfiado e revoltado, contou para Violeta que a ex-esposa desaparecera, os abandonara, e que ele decidiu voltar para junto de sua família de origem na cidade de Belo Jardim, em Pernambuco.
Explicando a razão dessa escolha disse que quando estamos sós, abandonados e desesperados, precisamos ir para perto de quem amamos e de quem nos ama, e que era como ele se sentia com seu pai, com seus avós e familiares do nordeste. Para realizar seu plano, comprou, com suas economias, uma pequena van que os levaria, a ele e à filha para o destino que traçara, revendendo biscoitos e fazendo pequenos serviços para custear a viagem.
O filme termina com um lindo amanhecer filmado de dentro do carro de Nassir, em movimento ao destino escolhido, e em outra cena com Violeta voltando para casa, descendo de um ônibus na direção de seu apartamento.
Creio que acompanhamos assim, mediados pela arte, o difícil trilhar dos enfrentamentos em situações de dor, decepção e abandono: podemos fazer boas escolhas, apesar de feridos, transformando assim sofrimentos em espaços de crescimento e aprendizagem emocional, social e existencial, ou podemos seguir nos destruindo e ao outro, quer com ações concretas, quer arrastando existências de infelicidade e ressentimento.
E para finalizar…
Desejo ter mais uma vez engrossado o clamor que reitero em cada texto: precisamos uns dos outros em espaços mais amorosos e de cooperação, para sermos capazes de superar nossas dores pessoais, relacionais e cidadãs.