Um amigo meu possui três cães. Um deles é uma cadela. Os outros dois são machos e irmãos de pai e mãe, da mesma ninhada e de aparência quase idêntica. Apesar das semelhanças físicas, não há dois cães mais diferentes um do outro.
Um deles é dócil e afável, se aproxima e aceita meu carinho desde o nosso primeiro encontro. O outro sempre está distante, não se aproxima nunca e rosna constantemente desde que cruzamos nossos olhares. O primeiro parece nos transmitir segurança e bem-estar. Como ele sempre se comporta de maneira amistosa, somos levados a nos sentir em casa e inteiramente integrados ao ambiente desde o início. O segundo, ao se mostrar distante, sempre nos lembra que ali não é o nosso lugar, que somos invasores de um território que não nos pertence. Esse último sempre gera uma sensação desconfortável ao nos fazer sentir que nossa presença não é desejada.
O cão dócil afirma com seu comportamento o modo de vida que possuímos e nos diz que somos bem-vindos do jeito que somos. O cão esquivo afirma que não estamos no nosso lugar, que não somos completos como somos e que devemos nos esforçar para alterar algo em nós – por que somente assim poderemos, talvez, ser plenamente aceitos e integrados ao lugar. O primeiro nos aceita e o segundo nos repele. Um diz que somos bem-vindos e o outro nos ameaça constantemente.
O cão que rosna
Claro que, a princípio, desenvolvi certa aversão pelo cão que rosna. Afinal, foi ele quem tomou a iniciativa de não se tornar meu amigo, ao contrário do seu irmão afável. Depois pensei no que esse estranhamento canino poderia querer dizer, ao me fazer lembrar que não estou na minha própria casa, de que me falta algo para ser plenamente aceito ali. Penso que ele, afinal de contas, me diz algo de muito importante com seu comportamento hostil.
Nessa vida não estamos de fato plenamente em nossa própria casa. Excetuando-se os soberbos, ninguém acredita que já está completo tal como é. Para esses, inclusive, há pouca esperança, porque eles tendem a se tornar imóveis. Para os demais, como nós, sempre se apresenta aquela sensação de falta, de necessidade de um complemento para nos tornamos seres humanos melhores do que somos. A maioria de nós está sempre em movimento, em direção a algo que julgamos melhor. O cão que ladra e rosna nos lembra que somos projetos humanos inacabados. O cão sempre amigo nos leva à acomodação, ao bem-estar e à segurança de nossa vida diária. Esse último é a afirmação de que nossa existência já é plena como é e que devemos nos alegrar com o que somos. Não se engane: o cão que nos abana o rabo é a encarnação da soberba.
Impulso para mudar
O cão que rosna é um impulso para nos tornarmos diferentes, porque ele coloca toda a nossa vida atual em dúvida. Ao não aceitar minha aproximação, ele me diz que eu sou um estranho, alguém que ainda não pode ser aceito como é e que possui carências. Porém, sou um estranho não para ele, mas para mim mesmo. Afinal, debaixo de minha aparência tranquila de ser alguém totalmente conhecido para mim, há algo que me escapa sempre e que recua junto com o horizonte. O cão que rosna, vê o desconhecido que há em tudo o que é familiar e me faz recordar do estranho e do inacabado que habita debaixo de minha pele.