por Monica Aiub
Tantos foram os avanços em relação à posição das mulheres na sociedade, mas ainda não foram o suficiente para substituirmos as relações de dominação por relações de convívio. É fato que vivemos relações de dominação em todos os gêneros e que estamos muito longe de colocarmos o convívio em primeiro lugar, pois a cultura na qual nascemos – e que defendemos, por escolha ou não – supõe a dominação para que possamos ter a concentração de rendimentos em uma parcela mínima da sociedade. Para a concretização de tal projeto, compreender o outro em sua legitimidade e conviver em harmonia são considerados impedimentos.
Negar a legitimidade do outro, discriminar, excluir são processos que trazem em si a legitimação da dominação e da exploração do outro. Como justificar a dominação se considerar o outro tão legítimo como eu? Como justificar a exploração se considerar o outro igual a mim? Como desconsiderar o olhar do outro, se ele possui tanta capacidade como eu? Como não há respostas plausíveis para tais questões, a saída histórica foi traçar categorias e perfis de modos de ser e classificar este outro como não pertencente à determinada categoria ou certo perfil.
Isto se acirra ainda mais com o surgimento do Liberalismo, no século XVII. A doutrina liberal, diferentemente do que alguns pensam, não pretendia ser defensora da liberdade para todos, aliás, não se tratava, na verdade, da defesa da liberdade do cidadão, mas da liberdade para os negócios, da livre iniciativa e concorrência. É claro que o Liberalismo é muito mais que isso, mas não abordarei seu desenvolvimento aqui. Quero apenas destacar que em textos como o Segundo Tratado do Governo Civil, de John Locke, ao mesmo tempo em que encontramos a defesa de que "todo homem nasce livre e igual", encontramos referências a seres inferiores e animais. Nesta época, escravos, mulheres, crianças e animais eram considerados como propriedade dos "homens".
Temos uma história de lutas e conquistas pela liberdade, mas também vivemos retrocessos de tempos em tempos, e parece que estamos vivendo um desses momentos, no qual a defesa da escravidão, da miséria, da discriminação, da violência; a negação da legitimidade do outro em prol de uma imposição de um modo de vida; discursos e ações violentos em todos os níveis e contextos sociopolíticos parecem ganhar corpo e espaço.
Países que há muito tempo detêm o poder sentem-se ameaçados diante da nova ordem que surge e, em contrapartida, tentando impedir que num breve período países emergentes ganhem cada vez mais espaço e tornem-se potências, propõem tratados comerciais que minam o poder dos governos transferindo-os para as mãos das grandes empresas, com o objetivo de retroceder no que se refere a direitos trabalhistas, à legislação ambiental, à defesa da exploração irrestrita.
O que pensar quando uma empresa impõe aos funcionários que usem fraldas geriátricas para não precisarem se ausentar do posto para ir ao banheiro? O que pensar quando uma empresa determina horários para o uso do banheiro? O que pensar quando diante de uma notícia sobre trabalho escravo infantil alguns leitores postam comentários sobre concorrência e preço do produto, ou sobre a necessidade das crianças aprenderem o valor do trabalho? O que pensar quando se questiona se uma família com renda mensal de até R$ 77,00 por pessoa, que recebe um benefício do estado de mais R$ 77,00 por mês, opta por não trabalhar e viver do benefício, como alguns afirmam? O que pensar ao ouvir pessoas dizendo que uma mulher estava "pedindo para ser estuprada", porque estava usando roupas "inadequadas"? O que pensar ao ouvir que um professor não pode tratar de questões políticas na sala de aula? O que pensar ao ouvir que ler determinados autores é prejudicial à formação dos jovens? O que pensar ao verificar que tendemos a 1% da população concentrando 99% das riquezas? O que pensar quando países emergentes, como o Brasil, ao invés de vislumbrarem o que vislumbram os atuais "donos do poder", querem integrar tratados para os quais não foram convidados a participar, e que têm como único objetivo impedir seu crescimento? A quem servem aqueles que defendem esses e outros posicionamentos? Será que, de fato, defendem a liberdade? A justiça? O "bem" para a maioria? Seus próprios interesses?
O que tudo isso tem a ver com a questão da mulher? Simples. As mulheres foram submetidas a um processo histórico de discriminação, que além dos processos de dominação tidos como "necessários" à manutenção da ordem vigente, carregam um peso maior, caracterizado por Simone de Beauvoir, no livro O segundo sexo, como a ideia de "destino". O argumento construído historicamente traz elementos fisiológicos, psicológicos e econômicos.
O argumento fisiológico diz respeito à força física. Mas as atividades imprescindíveis à sobrevivência não demandam, necessariamente, força física. Com o desenvolvimento tecnológico, menos ainda. O que faz com que as atividades desenvolvidas por homens sejam mais valorizadas do que as atividades desenvolvidas por mulheres? – pergunta Beauvoir. Por que a maternidade restringiria as possibilidades da mulher, levando-na a escolher entre ser mãe ou profissional? O que significa ser mulher?
Simone de Beauvoir nos mostra que não se trata, de fato, de um destino inexorável, mas de construções sociopolíticas que privilegiam determinadas formas de viver. Mais ainda, ela mostra que as lutas das mulheres são, na verdade, lutas por uma sociedade mais justa.
Talvez essa seja a razão pela qual as tentativas de retrocesso aos direitos das mulheres, e de outras minorias, esteja tão presente em nossos dias. Talvez, ainda, esse seja um dos motivos para uma segmentação dos vários movimentos em defesa das minorias, como descreve Donna Haraway em 'O manifesto do Ciborgue'. Em outras palavras, talvez imaginando defender a justiça, o bem ou nossos interesses, simplesmente alimentamos mais discriminação, exploração, dominação, impedindo uma real conquista de direitos e liberdade.
Mas, e você, como vê essas questões? A quem privilegia quando se posiciona nas ações cotidianas? Já pensou nisso?
Referências:
BEAUVOIR, S. O segundo sexo: Fatos e Mitos. Vol.I. 4 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.
______. O segundo sexo: A experiência vivida. Vol. II. 2 ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.
_____. HARAWAY, D. Manifesto do Ciborgue. In TADEU, T.; KUNZRU, H; HARAWAY, D. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.