Por Cybele Russi
O que você vai ser quando crescer? "Quando eu crescer quero ser bombeiro." "Quando eu crescer quero ser bailarina." "Quando eu crescer quero ser veterinário." "E eu quero ser cabeleireira." "Quando eu crescer quero ser professora e ter muitos alunos." "Quando eu crescer quero ser motorista de caminhão". "Quando eu crescer quero ser pintora e pintar muitos quadros"…" E eu quero ser mamãe ficar o dia todo cuidando dos meus filhos". "Quando eu for grande quero ter um posto de gasolina." " Eu quero ser cozinheira e fazer muitas comidas gostosas."
Estas são respostas e desejos comuns em crianças até os seis, sete, oito anos de idade, quando estão descobrindo o mundo e seus heróis e vivendo intensamente suas fantasias. Depois dessa fase, conforme vão se apropriando da realidade, vão se afastando gradativamente dos sonhos e abandonando a fantasia. Se por um lado isto é um ganho, pois demonstra que a criança está amadurecendo e penetrando mais e mais na realidade, por outro, é uma perda, pois temos visto que ao chegarem à adolescência os jovens simplesmente não têm a menor idéia do que querem ser na vida, que nem sequer se imaginam realizando uma profissão. E isto é muito ruim, mas não é culpa total deles. A família e a sociedade têm sua parcela de responsabilidade nisso.
Ao contrário do que acontece nos países desenvolvidos, no Brasil existe o preconceito com relação às profissões que não são de nível "superior". Por profissões de nível superior entende-se aquelas que só podem ser exercidas por meio da obtenção do diploma universitário, o famoso canudo. Uma grande estupidez, diga-se de passagem, e um enorme paradoxo. Estupidez porque todo e qualquer trabalho que se faça é digno e honroso, não importando qual seja; e paradoxal porque não faz sentido num país que tem a sua imensa maioria populacional constituída por semianalfabetos, desejar que só tenham valor as profissões de nível superior. Além de paradoxal, é uma forma de negação da realidade. Então, uma vez terminado o ensino médio, todo mundo tem que ir para a faculdade.
O Brasil não é um país com uma forte "tradição intelectual", muito pelo contrário, o número de intelectuais de destaque, com formação superior é uma minoria privilegiada, e talvez ainda leve muitos anos para que chegue a ser um país totalmente letrado, onde todos terão acesso à universidade, independente de cotas ou de outras facilidades que o governo possa inventar. Entretanto, tem se mostrado um país com forte vocação ao empreendedorismo. Mas isto não é o suficiente, o brasileiro só valoriza os doutores, os diplomados, os portadores de canudos.
Não há nenhum mal no fato de todos almejarem um curso universitário, é até um bom sinal. Ocorre que a universidade é apenas o primeiro passo para uma vida que exigirá para sempre comprometimento com leituras, pesquisas, cursos e mais cursos de aperfeiçoamento, de extensão, de pós-graduação, etc. O canudo é apenas o primeiro dos muitos certificados que uma carreira de nível superior exige. E se não for para ser assim, é melhor que não seja, pois, o que temos visto hoje são profissionais totalmente desqualificados, descompromissados com suas profissões, que mal sabem redigir um relatório ou uma carta de apresentação, que acreditam que o simples fato de serem portadores de um diploma universitário lhes garantirá um bom desempenho profissional.
Imagino o grau de indignação que minhas palavras possam estar causando até aqui, mas elas têm uma justificativa. Trabalho em escola e em clínica de psicopedagogia há mais de vinte anos e o que tenho observado ao longo de todos esses anos é uma massa esmagadora de alunos e clientes que simplesmente detestam ler e estudar, que ao final das contas, não têm a menor vocação para o estudo e para os livros e que, realmente, gostariam de nunca mais na vida terem de segurar um livro nas mãos. E são eles mesmos que afirmam isto com todas as letras. São jovens que, literalmente, entram em parafuso ao se verem às portas da faculdade, diante do vestibular.
Vestibular pra quê?
Há casos de estudantes que quase enlouquecem diante da simples menção do vestibular. E não é por medo do exame, ou do fracasso neste, mas porque não se veem cursando uma faculdade, apenas porque não sabem o que farão lá, porque não ouvem o "chamado" para uma profissão, e porque não gostam mesmo de estudar. (A palavra vocação é de origem latina "lat. vocatìo, ónis 'ação de chamar; intimação, convite'; ver voc-; f.hist. sXIII vocaçon, 1600 vocação; 3 disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade, uma função ou profissão; pendor, propensão, tendência in Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.)
Mas estranhamente, e apesar de tudo, lá estão eles, no mês de setembro, fazendo suas inscrições para os mais variados vestibulares. Não estão lá por vontade própria, mas para corresponder à expectativa que lhe foi imposta desde a infância pela família e pela sociedade, simplesmente porque a nossa sociedade não aceita e, conseqüentemente, não perdoa, quem sai do ensino médio e não cursa uma faculdade, ainda que seja a pior de todas, uma birosca qualquer de beira de estrada.
Mas há que se cursar uma faculdade e se trazer um diploma para casa e passar o resto da vida frustrado, ostentado uma vocação que não se tem, ou pior, largar tudo pela metade e recomeçar, recomeçar, recomeçar, e continuar perdido por muitos e muitos anos, como temos visto acontecer diariamente em todas as universidades do país. O número de estudantes que têm desistido no segundo, terceiro e quarto anos de faculdade só tem aumentado de ano a ano, para enorme tristeza e sentimento de fracasso dos estudantes e desespero dos pais, que já não dão conta mais de pagar, e pagar e pagar a cada ano uma nova tentativa.
É impensável que uma situação destas ainda ocorra em pleno século XXI, quando o homem desfruta total liberdade para agir e ser como melhor lhe aprouver. E nunca houve tantas alternativas profissionais com o hoje. Então, por que insistir na carreira de nível superior se o estudante não sente prazer no estudo, na pesquisa, na leitura?
No passado, apesar de as escolhas serem bastante limitadas, eram mais fáceis e menos angustiantes. A família estimulava a criança para o trabalho desde cedo. Desde muito cedo insistiam na pergunta: "o que você vai ser quando crescer?" E esta parece não ter sido uma má pergunta pois, ao longo da vida tinha-se tempo para refletir sobre ela e ir decidindo sobre o que se queria ser de fato. Então, a fantasia da infância, que não existia à toa, sempre voltava e tinha-se a possibilidade de revivê-la e de revisitá-la, e de revirar o sonho pelo avesso, e de confirmar e reconfirmar as escolhas da infância.
De uns tempos para cá, ficou convencionado que não se deve mais perguntar à criança o que ela quer ser quando crescer, e esta sim, foi uma convenção errônea, pois impede que a criança e o adolescente se projetem no futuro; impede que se vejam atuando num determinado trabalho, impede que revejam seus sonhos e seus planos. Impede, principalmente, que fantasiem sobre o futuro e se projetem lá para a frente. Então, quando é chegada a hora de saber o que se quer ser, eles simplesmente não sabem o que dizer. E não têm culpa alguma disso, afinal, ninguém nunca lhes perguntou isso antes. Assim, para não frustrar os pais, ou até, para cumprir um mandato familiar, o estudante acaba fazendo escolhas que em nada refletem sua verdadeira vocação.
Para evitar esse tipo de escolha fracassada, não seria nada mal perguntarmos de vez em quando, só para não esquecer: O que você quer ser quando crescer?