por Patricia Gebrim
“Não podemos escolher que um fato que ocorreu não tivesse acontecido, mas podemos escolher o que faremos com aqueles momento…”
Ontem eu fui assaltada. Aconteceu de verdade, mas prometo, este não é um artigo sobre assaltos.
Não vou dar detalhes pormenarizados a respeito da ação do assaltante, tampouco elaborarei um discurso sobre a insuficiência da nossa política social, o descaso das autoridades, a impunidade, a corrupção, as falhas no sistema educacional e por aí vai. Creio que você, leitor, já deve estar farto de ler sobre tudo isso nos noticiários.
– Eu estou, confesso.
Mesmo quando tentamos escapar desse desfile de negatividades, como é difícil evitá-lo, já perceberam? Acabamos sendo invadidos pelas TVs ligadas na padaria onde tomamos nosso café da manhã, pelas notícias em destaque nos sites da internet e por pessoas que se tornam disseminadoras de notícias cada vez mais aterradoras. “Os mensageiros do apocalipse”, é assim que nomeio, por brincadeira, essas pessoas que adoram comentar a última desgraça. Estou certa de que você conhece vários deles!
Essas notícias, aparentemente inocentes, acabam criando uma enorme onda de medo e apreensão que aprisiona a todos nós. E como se estivéssemos hipnotizados, passamos a reproduzir cegamente essa vibração sombria, feita de medo, desconfiança e separatividade, como se fôssemos ovelhas treinadas por um ser vermelho, que cheira a enxofre, dotado de rabo pontudo e chifres afiados, tenho certeza de que já ouviram falar dele por aí.
Nunca gostei muito do cheiro de enxofre, me parece um cheiro podre (interessante… basta trocar uma letrinha e “podre” vira “poder”, já perceberam isso?). Assim prefiro aproveitar o assalto para falar sobre coisas luminosas. Essa é a minha maneira de tomar em minhas mãos minha própria vida. Não, não gosto da sensação apertada de estar entre aquelas ovelhas todas, mesmo porque acredito, com toda a minha verdade, que nós não somos ovelhas. Somos homens, seres incríveis, dotados de capacidades maravilhosas, entre elas uma que sempre me pareceu especialmente brilhante:
– Somos seres dotados de uma infinita capacidade de cocriar a nossa realidade. Podemos transformar tudo em beleza… Disso sabem bem os artistas, bem como a parte poética de nossa própria natureza.
Vejam, a realidade não existe por si só, e sim no encontro com a nossa percepção. Assim, se conseguirmos perceber os fatos de forma diferente, se os envolvermos em consciência, beleza e profundidade; poderemos enxergar além do óbvio e misturar a nossa cor única a esse quadro dentro do qual fomos jogados.
Adoro pintar. Me espalho toda sobre o que quer que me aconteça, me desmancho em cores, me misturo, tinjo com minha cor a realidade… E eis que ela se transforma. É assim que faço:
– Fui assaltada sim, e daí? — dou uma pincelada.
– O que escolho fazer com isso? — o pincel desliza novamente.
– Consigo aprender algo com essa experiência? — deslizo o pincel e me divirto, sinto cócegas quando os pelos deslizam sobre minha nova percepção.
– Consigo transformar essa experiência em algo positivo? — e o pincel desenha lindas asas que se soltam e flutuam como se sempre tivessem estado nas costas daquela linda borboleta.
Não podemos escolher que um fato que ocorreu não tivesse acontecido, mas podemos escolher o que faremos com aqueles momentos, e é nesse espaço de escolha que nos constelamos como seres livres.
E assim, eu escolho acreditar que algum sentido deve ter existido naquilo que aconteceu, porque todos os dias, ao despertar, eu escolho, de novo e de novo e de novo, enxergar o mundo como um lugar milagroso e luminoso, a despeito das limitações da minha vista já meio cansada.
Eu escolho imaginar que por ter sido assaltada é que me dei conta de que tinha com quem contar, e é tão bom nos darmos conta de que não estamos tão sós nesse mundo que tantas vezes parece desértico e superficial.
E por ter sido assaltada é que fui parar naquela delegacia. E que por ter ido parar na delegacia é que conheci aquela menina, uma menina ainda na flor da idade cujo coraçãozinho chorava a morte de um ente querido. E por conhecer a menina, pudemos por alguns instantes tocar a alma uma da outra, e eu pude dividir com ela meu silêncio, minhas palavras, meu abraço. E pude de alguma forma contar-lhe sobre a luz que mora dentro dela e que poderia tomá-la nos braços todas as noites, beijando o caminho de suas lágrimas e acalentando seu coração. E pude ser transformada por ela, que talvez nem saiba ainda de seu enorme poder de transformar tudo o que toca. Somos seres mágicos, todos nós.
Eu escolho acreditar que aquele encontro possa ter sido significativo. E que nesse breve espaço sagrado onde um ser humano encontra e acolhe outro, sabendo da reciprocidade de cada pensamento e ação, algo milagroso acontece, algo tão grande, belo e sublime que torna o pequeno assalto um ínfimo grão de areia na imensidão de possibilidades de que somos feitos, todos nós.
Ouçam. A nossa verdadeira natureza está para além das prisões do medo e da visão limitada das ovelhas. Todos nós podemos abrir nossas asas e chegar lá, naquele espaço luminoso cheio de liberdade, foi isso o que pensei ontem à noite antes de dormir.
Hoje me sinto grata, viva como nunca, conectada com essa força maior que envio a cada um de vocês através de cada letra que brota selvagem de meus dedos neste momento.
Escolham, misturem-se com o mundo e ousem derramar, sobre cada pequeno evento de seus dias, a sua cor.