por Gilberto Coutinho
Possivelmente, em nenhum outro lugar, a espiritualidade e a natureza coexistam de forma tão singular e harmoniosa quanto na Índia. Lá, a natureza é vista e adorada como deus.
Uma antiga e interessante história hindu conta que, certa vez, Ganga – a deusa das águas – regava os jardins do céu dos deuses. Como seus poderes purificadores eram também necessários aqui, para nutrir a terra e remover o sofrimento, a fome, as doenças, as impurezas e as cinzas dos mortos, Ganga aceitou auxiliar a raça humana. Mas o impacto de sua vinda à Terra teria causado uma grande catástrofe. Então, o poderoso deus Shiva interveio. Em Gangotri – lugar sagrado no Himalaia onde nasce o rio Ganges –, Shiva pegou o rio Ganga pelos cabelos, amortecendo sua chegada na terra, canalizou-o na forma de milhares de riachos. A queda esplendorosa da nascente do rio Ganges, no Himalaia, é uma lembrança de sua descida conturbada.
Pelo seu importante significado e pela sua localização geográfica, quase toda a populosa nação indiana considera o rio Ganges, ou Ganga, como uma das suas divindades mais poderosas. Ao abençoar o subcontinente com um grande volume de água, o rio nasce abundante dos picos das montanhas mais altas do mundo e cobertas de gelo – o Himalaia –, nutrindo e fecundando as vastas planícies áridas do norte da Índia; sem ele, toda a região seria completamente infértil. Passando por entre as planícies quentes do norte, o rio Ganges percorre uma distância de 2.500 km até alcançar as margens da Baía de Bengala.
Embora a Índia possua muitos outros rios sagrados, é o Ganges que nasce na “terra dos deuses”, dos picos mais altos do Himalaia, conhecidos como “Dev Bhoom”, e flui pelo coração do país e, por isso, é considerado o rio da vida e da purificação. Acredita-se que a visita às fontes “sagradas” do rio Ganges traga bênçãos e prosperidade aos peregrinos.
Nas montanhas do Himalaia, templos antigos são visitados anualmente por milhares de peregrinos, e a tradição religiosa exalta quatro importantes rios como fontes “sagradas” do Ganges:
(1) o rio da aldeia de Kedarnath (a 3.500 m de altitude; das aldeias mais baixas, são necessários quatro dias de escaladas para se chegar até lá; no inverno, o templo permanece vazio e fechado, mas, com a chegada da primavera, reabre festivo para receber visitantes de todas as partes);
(2) a aldeia de Yamnotri (a 60 km a oeste de Kedarnath; ponto que marca o início do rio Yamuna, relevante para os hindus, apesar de não ser a verdadeira fonte dos Ganges; sua importância reside nas piscinas sulfúreas e quentes existentes debaixo do templo, que dizem ser das origens profundas do Himalaia; antes de orar no interior do templo, os peregrinos se purificam num banho ritualístico e prazeroso);
(3) Badrinath (perto da fronteira do Tibete, templo colorido e brilhante, com mais de 500 anos de existência; deuses e animais estão esculpidos em sua fachada; somente os peregrinos mais determinados conseguem chegar até essa região); e, finalmente,
(4) Gangotri (o mais alto e o mais importante templo de todos; é o lugar onde os hindus acreditam ser a origem do Ganges na terra).
Ganges: fé indica nascente
Na Índia, até mesmo hoje, parece ser a fé, e não a geografia, que indica a verdadeira nascente do rio Ganges. Até mesmo Gangotri pode não ser a sua real fonte. Mais acima, no alto do vale, num lugar extremamente frio e solitário, encontra-se uma das maiores geleiras do Himalaia e a caverna de gelo conhecida como Gaumukh – a boca da vaca –, de onde flui um esbranquiçado riacho, considerado por muitos a fonte do Ganges. Mais acima ainda, no alto da geleira, existe muita água corrente. Tudo indica que é nos prados de Tapovan que as origens espirituais e geográficas do rio Ganges parecem definitivamente juntar-se. Poucos peregrinos visitam esse lugar distante, gelado e inóspito. Na verdadeira e mais distante fonte do Ganges, somente os sádhus (ascetas e yogues virtuosos) mais fervorosos e esforçados ousam chegar, a mais de 4.000 metros de altitude.
Indubitavelmente, a Índia é a terra do sagrado, dos deuses, dos yogues, dos santos, de grandes homens e mulheres e de tantas outras maravilhas…, quanto a própria simplicidade, compaixão e benevolência. Assim como o Ganges e os animais, o idioma sânscrito também é sagrado.
Os primeiros sinais de surgimento da língua e literatura na Índia, marco das maiores conquistas da humanidade, ocorreram por volta de 1500 a.C. Sânscrito, antiga e requintada língua indoariana, tornou-se o idioma sagrado da civilização brâmane e a mãe de todos os dialetos falados hoje em quase toda a Índia, no Paquistão e em Bangladesh. Linguistas de diversas partes o consideram a “mãe mais velha” de todas as línguas existentes. Atualmente, o sânscrito não é o idioma oficial, no entanto mantém-se vivo na língua culta da Índia.
No século V ou IV a.C., Shri Maharishi Paníni, grande sábio e gramático indiano (que viveu no noroeste da Índia), sistematizou o sânscrito de forma muito sábia e precisa, ao escrever um dos mais importantes tratados de gramática sânscrita, intitulado Astadhyayi (“Os oito capítulos”), constituído por cerca de 4.000 sutras ou aforismos (máximas). Tal compêndio linguístico é considerado por muitos estudiosos no mundo como uma das maiores obras da inteligência humana; acredita-se que nenhuma outra língua até os dias atuais tenha sido tão bem descrita, como o fora o sânscrito por esse grande mestre indiano.
Vedas: textos sagrados
Ainda hoje na Índia, os jovens brâmanes aprendem essa antiga língua com o intuito de compreender e recitar os mais antigos textos sagrados, os Vedas – conjunto de quatro escrituras sagradas de várias religiões da Índia, tais como o Vedismo, o Bramanismo e o Hinduísmo. Segundo a tradição hindu, os Vedas são os textos religiosos mais antigos do mundo, muito anteriores à Bíblia cristã.
Qual é a real origem do sânscrito?
Será que ele já era falado nas grandes e progressistas civilizações de Harappa e Mohenjo-Daro, no vale do rio Indo?
Nasceu na planície do rio Ganges? Ou foi trazido de fora pelos arianos? Perguntas como essas ainda hoje não podem ser completamente esclarecidas pela ciência, apesar do Rig Veda (o primeiro fascículo dos Vedas) ter dado algumas pistas.
Mas, na Índia, existe uma tradição um tanto poética quanto antiga que explica a origem do idioma sânscrito. Há milhares de anos, quando yogues meditavam profundamente no silêncio das florestas, dos vales, das grutas e das montanhas do Himalaia, conseguiram abstrair de suas mentes os sentidos e os sons externos e, mediante uma apuradíssima concentração, interiorização e controle corporal, foram capazes de ouvir vibrações extremamente sutis provenientes de diversos centros de energia (chakras), localizados em diferentes partes do corpo. Verbalizaram, agruparam e, posteriormente, registraram na forma escrita 49 tipos de vibrações diferentes; cada um desses sons interiores e sutis deu origem às letras do alfabeto sânscrito. E, assim, esse idioma foi desenvolvido a partir dos sons sutis do próprio corpo humano. Por tal razão, o sânscrito também é conhecido como a “língua dos deuses” e/ou a “canção eterna” do corpo humano, e a maioria dos mantras (sons sagrados) indianos é escrita nesse idioma.
A linguística indoeuropeia e a gramática comparativa nasceram no final do século XVIII, quando os ingleses chegaram a Calcutá e os filólogos europeus tomaram conhecimento do sânscrito. Um personagem importante no estudo do sânscrito foi o juiz galês William Jones, fundador da “Sociedade Asiática”, que muito admirava a civilização e cultura indianas e convenceu um brâmane a ensinar-lhe o sânscrito. Suas posteriores descobertas revolucionaram a história das línguas.
Em 2 de fevereiro de 1786, Jones William deu uma palestra na sede da sociedade, que então fundara. Assim como outros estudiosos anteriores, ele percebeu também grandes e relevantes semelhanças entre sânscrito, latim e grego. A palavra “pai” se escreve “pater” em grego e latim, e “pittar” em sânscrito; “mãe”, “mater” em latim, “meter” em grego, em sânscrito “matar”. A palavra “cavalo” em sânscrito, “aswa”, é incrivelmente a mesma utilizada na Lituânia, “aszwa”. Jones, naquela época, afirmou que nenhum filólogo que estudasse profundamente esses três idiomas deixaria de concluir que eles apresentavam uma mesma origem linguística comum.
Enfim, a Índia é também a terra de muitas sabedorias, palco de grandes pensadores e magníficos exemplos humanitários de solidariedade, amor e compaixão, que poderiam até ser seguidos por todo o mundo, e de luta pela superação da miséria e do sofrimento humano. Para os hindus e os yogues, deus pode ter vários nomes, alguns, dentre os quais, são a verdade e o amor. Para muitos sábios, uma meia verdade é uma mentira inteira, e o verdadeiro amor é o caminho para a salvação.