por Roberto Goldkorn
Lembro de um acontecimento marcante na minha vida na época em que atendia as pessoas em uma clínica no Rio de Janeiro. Era uma sexta-feira e no começo da tarde atendi a um casal – mãe e filho. A queixa deles era a seguinte: O menino sentia que tinha uma vocação iluminada para ser surfista profissional, e a mãe queria que ele estudasse e fosse engenheiro como o falecido pai. Ele falou do Havaí, do sol do mar infinitamente azul, as ondas perfeitas, as mulheres bronzeadas… confesso viajei nessa onda.
Tudo ali era extremamente solar, claro, superficial, todo o problema e as dificuldades de ambos eram reais, podia-se quase apalpar o dilema deles de tão concreto. Orientei a dupla e quando saíram deixaram-me com a sensação de um domingo de sol em Ipanema – a vida parecia ser apenas aquilo que se via, se sentia e se podia medir. Tive uma imensa vontade de tomar um milk shake ou uma água de coco gelada.
A última consulta do dia (eu já estava no clima do happy hour) começou já me surpreendendo. Entraram três moças na faixa de seus 25/30 anos e pediram, quase imploraram para que eu permitisse que as três permanecessem. Eu ainda tentei explicar que os problemas de uma talvez esbarrassem nos problemas da outra, mas elas me pediram que tivesse paciência e ouvisse a sua história – eu certamente mudaria de opinião. Nesse momento o sol começou a se pôr no Havaí e minha sobrancelha esquerda ergueu-se acentuadamente.
Elas relataram que pertenciam a uma seita espiritualista que era orientada por uma “entidade” extraterrestre. Cada uma tinha a sua vida normal fora da seita, (só me lembro que uma delas a mais morena, era enfermeira, das outras não me recordo as profissões) mas todas estavam no “limite da razão”.
Em resumo, elas estavam pedindo ajuda, porque nas práticas da seita estavam as “viagens” a universos paralelos. Elas me descreveram locais paradisíacos, onde havia muita paz, todos se entendiam, todos buscavam a elevação espiritual, a convivência com seres de luz era indescritível, os êxtases se davam através da meditação etc.
Como na minha profissão não cabe a manifestação da estranheza, apenas fiz algumas perguntas para testar a sanidade psicológica delas – todas lúcidas e no domínio de suas faculdades mentais como diria um médico forense. “O problema”, começou a falar uma delas, é que alguns membros do grupo já não estavam querendo mais “retornar” para a realidade tridimensional, como elas descreveram nosso mundo de ondas havaianas, lágrimas e suores.
Inclusive, uma delas estava considerando seriamente o não retorno. E como seria isso? O que aconteceria ao corpo físico caso resolvessem não voltar? Fiz essas perguntas já sabendo das respostas, mas era importante que elas tivessem a coragem de falar com todas as letras. Ainda insistiram no discurso vago, impreciso, escamoteando os “detalhes operacionais”.
“O corpo físico morreria”, admitiu a mais jovem de todas e a mais disposta a não voltar da viagem interuniversos. Perguntei sobre os familiares, as pessoas queridas, se elas não se preocupavam com eles, se conheciam bem esse universo paralelo em que estavam indo apenas a passeio etc. Aos poucos vi que elas se conscientizaram que tinham ido longe demais com um não iniciado. Perceberam que não teriam em mim um aliado para endossar a sua decisão de abandonar o barco ou a prancha de surf – para ficar ainda no clima do universo solar dos clientes anteriores.
Elas estavam me arrastando para seu universo lunar, sombrio, um imenso pântano de densos vapores onde nada é concreto, onde a matemática se dissolve e nada é o que não parece.
Elas resolveram que já haviam falado mais que seus limites permitiam e se apressaram a ir embora. Mas deixaram atrás de si a névoa anti-Havaí, o lado oculto da Lua que coexiste ao lado de cada um de nós.
Não era a primeira vez que entrava em contato com esses universos imponderáveis, mas minha face solar ainda era tão intensa que esses portadores lunares acabavam me rejeitando até como visitante.
Ainda tentei obter mais informações delas, mas todas se fecharam e saíram apressadas como se alguém tivesse soado uma campainha dizendo que já tivessem ultrapassado o bastante.
Elas se foram e eu fiquei ali, sem ânimo para encontrar com os amigos na Adega Pérola e tomar as cervejas geladas, comer os petiscos e falar alto para ser ouvido em meio à algazarra da multidão solar.
Eu não podia mais voltar ao “Havaí” impunemente, mas não era admitido no universo paralelo onde tudo era paz e elevação espiritual. Fiquei ali parado olhando para o vazio. Pregado como uma borboleta por um alfinete invisível entre os dois universos.
Quando finalmente saí, fui andar – chutar lata como dizia um amigo. Olhei para o céu, o sol poente ainda descia lentamente enquanto uma lua pálida se acomodava em seu lugar na imensidão azul.
Sorri, era assim mesmo que me sentia por dentro.