O vírus da covid e o poder

Existem possibilidades nos eventos que jamais se realizarão. Isso é, embora elas sejam viáveis, não se efetivam em função de impossibilidades mais fortes ou de um conjunto de circunstâncias desfavoráveis. A pandemia causada pelo Covid possui suas próprias possibilidades irrealizáveis. Uma delas certamente é a maneira como temos nos relacionado com tudo aquilo que não é humano.

Em função de um conjunto de fatores culturais enveredamos há séculos pelo domínio de tudo aquilo que não é humano. Evidentemente essa disposição se deve a uma reação de temor diante daquilo que não somos nós. O ser humano simplesmente se sentiu ameaçado diante do mundo. E, em função de compreender a totalidade exterior como ameaçadora, dispôs-se a dominá-la de tal forma que ela viesse a tornar-se dócil e mesmo humana. Toda a nossa tecnologia nada mais é do que o resultado dessa necessidade de estabelecer controle sobre forças que nos pareceram ameaçadoras, de fazer o mundo mais humano e familiar – mais seguro.

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Não tivéssemos nós temido o mundo que nos cerca, não teria sido necessário iniciar o processo de controle e subjugação. Seguindo a lógica implícita na disposição de domínio causado pelo medo, tudo o que é estranho tem de se tornar humano, tudo o que poderia nos escapar deve ser subjugado e converter-se em uma modalidade de servidor da humanidade. A lógica do poder é de expansão contínua, de controle de extensões cada vez maiores e mais profundas do mundo, de humanização gradual do universo, de ampliação daquilo que é familiar e detrimento de tudo o que é estranho.

Vírus estampa uma dimensão da natureza que não dominamos 

Um vírus que nos ataca é um estranho. Ele faz parte de uma parte do mundo que não obedece às necessidades humanas, daquela dimensão da natureza que ainda não dominamos. De certa forma, o advento do Covid faz parte de uma epopeia em que os humanos enfrentam os não humanos com vistas a subjugá-los. Uma batalha de séculos e que ainda não terminou – e talvez não termine.

Nesse sentido, o Covid pode ser compreendido como um inimigo não humano, como um desafio. Ele é, ainda desse ponto de vista, um inimigo que precisa ser vencido. Se estou correto, parece quase inevitável que essa ameaça funcione como um aguilhão para nossa crescente vontade de poder. Um obstáculo dessa dimensão certamente motivará os seres humanos para empenhar mais e mais energia para os novos combates. Tudo indica, portanto, que o Covid funcionará como um gatilho para energias humanas que intensificarão as iniciativas de controle do mundo. Em último caso, será a vontade de poder que virá a ser instigada ao combate pelo Covid.

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“…todos os outros também são como nós – mesmos os vírus!”

Ao lado dessa reação para a batalha, há uma outra possibilidade que, em função do contexto cultural, certamente passará em branco. Me refiro à possibilidade de que avaliemos ou abandonemos a lógica do domínio diante de seu fracasso pontual. Afinal, a emergência do Covid também pode ser compreendida como o fracasso da lógica de domínio dos não humanos. Com isso, quero me referir à possibilidade de que possa se estabelecer entre nós e todos os outros uma relação em que não impere a subjugação. De certa forma, isso significaria dar um passo ousado na direção de reconhecer que todos os outros também são como nós – mesmos os vírus!

Reconhecer que outros são como nós significa estender a política até eles – ou reconhecer a nós mesmos como outros (sem política). Isso implicaria em retirar a fronteira que estabelecemos entre humanos e não humanos, em instituir uma grande unidade em que todos estariam incluídos, mas não sob a forma de senhores ou servos. Para isso, seria necessário desativar nossa vontade de domínio, nossa disposição em subordinar os não humanos, em fazer valer nossa vontade sobre tudo o mais. Certamente teríamos que ter vencido o medo do mundo.

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A real extensão da democracia

De certa forma, isso significaria estender a democracia para além dos seus atuais limites humanos (pelo menos tendo em vista aqueles lugares em que ela já funciona para os humanos). Se todos somos realmente iguais, não há nenhum sentido em que uns dominem os outros. Sem isso, nossas disposições democráticas serão sempre limitadas ao mundo humano. E talvez justamente por isso, por essa falha hipócrita de uma democracia limitada aos humanos é que a própria democracia humana não possa se tornar efetiva. Aquilo que atribuímos aos outros volta-se contra nós: a diferença intransponível que predicamos aos outros é sempre uma diferença intransponível entre nós. E essa última é o contrário da democracia.

Ressalto apenas que essa intensificação da democracia veiculada pelo advento do Covid me parece muito mais uma possibilidade contida nos atuais eventos, mas que se perderá de vista e função do nosso anseio ainda crescente por mais poder. Desejo realmente estar errado e que já tenha chegado o momento de contornarmos o Cabo da Boa Esperança e adentrarmos em um mundo sem medo.