por Aurea Afonso Caetano
Somos procurados em busca de alívio. Nossos clientes pedem que os ajudemos a dar conta de alguma dor que os incomoda. Muitas vezes, o desejo, legítimo, que os move é resolver uma questão difícil e poder esquecer tudo o que passou. Metáforas como virar a página, por um ponto final em tudo isso, passar uma borracha em cima do que aconteceu acompanham esse desejo.
Temos também nós, analistas, um desejo um tanto onipotente. Queremos dar conta de tudo, temos a fantasia de poder resolver todas as questões que o cliente nos traz e ajudá-lo em seu caminho rumo à resolução total.
Temos sido treinados há muito tempo para isso. Fazemos nosso o desejo de nosso paciente ou ao menos o desejo manifesto, o sintoma, o que os trouxe até nós. E não poderia ser diferente, afinal, nossa eficácia é medida através da resolução do problema trazido por ele, do alívio do sintoma, quanto menores os efeitos colaterais melhor.
Pensar no encontro analítico como a possibilidade de resolução de um conflito é apenas lidar com parte de nossa responsabilidade ou de nossa tarefa. Mas, somos também treinados a olhar o que não é visível, a procurar o invisível, o essencial e como dizem os poetas: "O essencial é invisível aos olhos" ou à consciência".
Processo analítico é então, também, um processo de forja do esquecimento para encontro do real. Prezamos muito palavras como verdade e realidade buscando algo como um ponto de vista correto, um ponto de equilíbrio além de nós mesmos, algo imutável a partir do qual tudo possa funcionar bem e que tudo esteja em seu lugar. E nosso desejo vai imprimindo suas marcas nesse caminho turvando a visão do processo. Julgamos ser verdade o que nossos olhos conseguem ver, o que nossas palavras conseguem abarcar. Corremos o risco de substituir a vivência real por uma vivência imaginária, algo que acontece dentro e apenas dentro de nós, desejo de continuidade, de dar conta da vida sem tantos sobressaltos. Como lidar com os resíduos, com aquilo que somos e não somos ao mesmo tempo. Onde está o real? E, o que é o real?
Proust, sabemos, escreveu sua obra monumental a partir das lembranças evocadas pelo cheiro das madeleines. E com um sentido único para nós nomeou-a "Em busca do Tempo perdido". E de que tempo nos fala Proust? Como Santo Agostinho, ele nos fala do presente do passado; um passado tão presente que pode ser evocado com imensa riqueza de detalhes, pode ser reconstruído, constituindo uma verdadeira "realidade", aqui e agora.
Diz Fernando Pessoa através de seu heterônimo Alberto Caieiro:
Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, desencaixotar minhas emoções verdadeiras, desembrulhar-me, e ser eu… (Pessoa, 1978).
E o que seria no trabalho analítico esse "desembrulhar-me e ser eu"? Seria a possibilidade de rever o aprendido e consolidado, limpar, ou raspar a tinta, como nos diz Fernando Pessoa, tirar as camadas que foram sendo depositadas ao longo da vida e poder chegar ao essencial, ao eu mais verdadeiro.