por Monica Aiub
Você já se sentiu longe do local onde está fisicamente? Por exemplo, presente no trabalho, mas em casa em pensamentos? Na escola, mas tão voltado para si mesmo que, se perguntado o assunto da aula não saberia responder? Ou ainda, sendo capaz de sentir o que outra pessoa sente, esquecendo-se, por alguns instantes, de suas próprias sensações?
Em filosofia clínica há um tópico da Estrutura de Pensamento, denominado Espacialidade, que observa a localização espacial dos movimentos existenciais. Nele o filósofo clínico acompanha os “locais” para os quais o partilhante (paciente) volta a sua atenção.
Com fundamento nos conceitos de intencionalidade e espacialidade de Maurice Merleau-Ponty (em Fenomenologia da Percepção), o tópico Espacialidade se subdivide em quatro movimentos, que podem ocorrer simultânea, sucessiva ou isoladamente. São eles: Inversão, Recíproca de Inversão, Deslocamento Curto e Deslocamento Longo.
No movimento de Inversão, a pessoa volta sua atenção para si mesma. Seu próprio corpo, suas ideias, seus sentimentos, suas ações, seus movimentos estão em foco. Estar em si mesmo, sem abertura para o mundo, para o outro; uma não disposição para sair de si; a possibilidade de trazer o outro a seu mundo existencial, mas não de visitá-lo, são exemplos de movimentos inversivos.
Recíproca de inversão
Na Recíproca de Inversão, a pessoa volta sua atenção para o outro, ou para outros. Observar o outro em suas ações e modos de ser, preocupar-se com o outro, ver o mundo a partir dos referenciais do outro, ver a si mesmo a partir do olhar alheio, desejar viver a vida do outro, apropriar-se e habitar o mundo existencial do outro, perdendo sua identidade, são algumas formas de manifestação de Recíproca de Inversão.
Os Deslocamentos Curtos são movimentos nos quais a atenção da pessoa dirige-se para objetos presentes, perceptíveis através das sensações: sons, cheiros, sabores, texturas dos objetos presentes aos órgãos dos sentidos. Distrair-se com sons, formas de objetos, cores, sabores, cheiros são exemplos de Deslocamentos Curtos.
Os Deslocamentos Longos são movimentos nos quais a pessoa se desloca para outros locais, tais como: ideias, situações passadas, perspectivas futuras… também ocorre quando a pessoa encontra-se num lugar e está “longe”, com sua atenção voltada para outro.
Abordarei aqui os movimentos de Inversão e Recíproca de Inversão, pois tratam especificamente de relações entre pessoas. Para uma possível exemplificação da questão, imagine-se conversando com alguém, numa situação vivida.
Em tais situações, muitas são as combinações possíveis dos estados de Espacialidade. Suponha que seu interlocutor está falando e, enquanto isso você acompanha atentamente a sua fala, ao mesmo tempo em que observa seus gestos e expressões, tenta situar os conteúdos da fala e significá-los a partir dos referenciais que ele lhe apresenta. Nesse processo, você estabelece uma Recíproca de Inversão com seu interlocutor. Quantas vezes, e por quanto tempo, você consegue manter esse estado de Recíproca?
Agora imagine que, enquanto ele fala, você acompanha atentamente a sua fala, observa seus gestos, expressões, tom de voz, mas situa os conteúdos da fala dele a partir dos referenciais que você já possui, ou seja, a partir de seu próprio olhar, de sua história de vida. Nesse caso, você estará em Recíproca enquanto ouve, mas, imediatamente, em Inversão, enquanto significa o dito.
Pense em outra situação, na qual seu interlocutor fala e, simultaneamente à escuta, você busca, em seus pensamentos, argumentos para contrapor aos dele, formas de desconstruir o que ouve e maneiras de convencê-lo a pensar como você. Ainda assim, você estará em Recíproca, enquanto escuta e enquanto o considera para selecionar os argumentos. Mas estará em Inversão na medida em que toda a sua Recíproca é direcionada para defender suas próprias ideias.
Veja-se, agora, diante de seu interlocutor e, enquanto ele fala, você está tão voltado às próprias ideias que sequer escuta o que ele diz. Agora você está inversivo.
Mas suponha que enquanto seu interlocutor fala, você nem o deixa terminar, porque, afinal, você já sabe o que ele quer dizer, e, para facilitar as coisas, antecipa a fala dele. Veja novamente um movimento de Recíproca, estabelecido a partir de uma Inversão, tornando, por isso, o movimento inversivo.
Ainda diante de seu interlocutor, mas agora ele nem precisou falar, porque você já sabe – porque pessoas que fazem expressões faciais ou possuem posturas físicas como a dele assim pedem, ou porque você, no lugar dele, assim o faria –, então você age, fazendo por ele aquilo que ele não pediu. Nesse caso, você estará em Inversão, utilizando Recíproca apenas na observação de uma expressão ou postura, mas avaliando-as a partir de seus próprios referenciais.
Esses são apenas alguns exemplos dessas relações. De que maneira você, habitualmente, se posiciona diante da pessoa que escolheu para pensar o exemplo? Numa Recíproca em Inversão com você eu afirmo que, muito provavelmente, você respondeu que depende da situação, depende do assunto em questão, de como você está no momento da conversa, enfim, depende de inúmeras variáveis.
De que maneira você gostaria que o outro se posicionasse diante da conversa com você? Novamente, no mesmo movimento, suponho que você responderá que depende da situação, mas, provavelmente, há tendências, predominâncias, que variam para cada um de nós.
Contudo, a percepção de nossos próprios estados de espacialidade, em nossos diferentes momentos e situações de vida, poderá nos auxiliar a trabalhar questões tais como: a qualidade das relações que estabelecemos com o outro, a qualidade e o foco de nossa atenção, nossas possibilidades de ampliação da compreensão, nossos posicionamentos diante do mundo e do outro, entre outras tantas e muitas questões.
Onde você esteve, em sua espacialidade, enquanto leu esse texto? Onde você está enquanto está diante do outro? Em que isso interfere na qualidade da relação que você estabelece com esse outro? O quanto isso permite ou impossibilita uma relação?