Opressão disfarçada de carinho

Qual a real função de um comportamento? Uma análise psicológica da música ‘Me deixa ser mulher’, revela os indícios de uma relação manipuladora e fracassada, predisposta a se tornar abusiva

Hoje lhe convido a examinar a letra de Me Deixa Ser Mulher, interpretada e composta por Lucy Alves, em parceria com Gabz e Marcel Souza. Ouça a canção: 

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Depois, quero compartilhar contigo algumas de minhas reflexões

Aquele mesmo jeitinho
Que antes te deixava doidinho
Hoje incomoda

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Disfarça de ninho
Gaiola de passarinho
Quer tirar minhas asas

Então como é que faz?
Eu sorrio demais e você não suporta
Não confunda amor com a mania
De sempre implicar com a minha roupa

E se um beijo for pra calar minha boca
Não me faço de tonta e digo: Qual é
Não me venha com domínio
Disfarçado de carinho
Me deixa ser mulher

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Me deixe viver
Me deixe ser
Me deixe só
Que sozinha eu fico bem
Mas bem melhor

Me deixe viver que eu fico bem
Me deixe viver e vá viver também

Meu grito ecoa e cê recua
Ao saber que eu não sou sua
Eu não sei como se atua nesse seu jogo de amar
Tô ocupada sendo minha e não vou te esperar

E se um beijo for pra calar minha boca
Não me faço de tonta e digo: Qual é
Não me venha com domínio
Disfarçado de carinho
Me deixa ser mulher
Me deixa ser o que eu quiser

Análise da letra  

E aí? Será que dividiremos as mesmas impressões?

Em termos gerais a música sinaliza um relacionamento predisposto a se tornar abusivo e do qual a mulher busca se ver livre.

Lucy começa colocando o dedo na ferida de muitos relacionamentos: uma característica da parceira que, ao início do convívio, parece ser muito atraente acaba por tornar-se foco de críticas e rejeição. Aquele jeito aberto de sorrir, antes elogiado pelo parceiro, passa a estorvar; o sujeito começa a dizer que a moça se porta de um jeito exibido, que sorri para qualquer um, que parece vulgar…

Não demora muito, a mulher é cerceada em suas iniciativas e campos de atuação, e isso é disfarçado com palavras aparentemente doces. “Desista do teu compromisso. Vamos ficar em casa, juntinhos, vemos um filme e tomamos um vinho”. A proposta parece boa, mas só é, sistemática e disfarçadamente imposta, quando a moça iria, por exemplo, sair com amigas ou visitar os pais. Caso a moça relute em desistir, o parceiro fecha a cara, se faz de ofendido, diz que assim se sente menosprezado, apela para chantagens.

Interessante que a moça diz, na lata, que beijo para calar a boca não lhe serve. Para ela, beijo é sensualidade, conexão que não oprime. Ela desconstrói o argumento de que a implicância do rapaz em relação a seu modo de vestir seria justificada como uma forma de amor, O moço diz que gostaria de esconder sua musa dos olhares alheios. Mas quem ama faz questão de preservar o espaço para a mulher se expressar plenamente, inclusive nas vestimentas.

Opressões levam uma relação a fracassar

No meu entendimento a música é sobre uma relação fracassada, cujo insucesso provavelmente se deve a ações opressivas, capazes de restringir a liberdade da mulher sob argumento de que tudo aquilo seria amor. Quem já não viu casais assim?

O que mantém o amor?

 O amor, para se manter, requer sabedoria, generosidade, confiança e doação. Infelizmente, não me pareceu ser o caso aqui na música,..

É psicoterapeuta na abordagem analítico-comportamental na cidade de São Paulo. Graduada em Psicologia pela PUC-SP em 1981, é Mestre e Doutora em Psicologia Experimental pela IP-USP. Atua como terapeuta e supervisora clínica, é também professora-convidada em cursos de Especialização e Aprimoramento. Publicou dezenas de artigos científicos, e de divulgação científica, além de ser coautora de livros infanto-juvenis.