por Luiz Alberto Py
Na primeira parte desta série de três artigos (clique aqui e leia), citei o historiador americano Quigley (1910-1977), estudioso da evolução das civilizações, que fala sobre um processo encontrado em quase todos os fenômenos sociais: a institucionalização dos instrumentos. Ele afirma que os instrumentos criados pelos seres humanos no sentido de desenvolver progresso se institucionalizam, ou seja, se transformam em instituições com uma sutil mudança na sua finalidade, para uma autopreservação egoística.
Bem… vamos à segunda parte deste assunto, onde adentro por um enfoque mais psicanalítico.
O psicanalista argentino Arnaldo Rascovsky, em seu livro El filicídio, uma reflexão sobre o conceito psicanalítico do Complexo de Édipo, nos chama a atenção para o fato de que é muito mais frequente os pais matarem seus filhos do que os filhos matarem os pais. O próprio mito grego sobre Édipo, mais que a historia de um parricídio, é a de um filicídio mal-ucedido.
As estatísticas nos mostram que o crime de filicídio é muito mais frequente que o de parricídio: 4,5% de todos os assassinatos cometidos nos Estados Unidos em 1966 foram crianças mortas pelos próprios pais; quase 50% das vitimas de assassinato na Dinamarca em 1967 eram crianças. Com o crescimento geométrico da população, a luta de pais contra filhos expande-se a uma luta entre gerações, os mais velhos tentando aniquilar os mais jovens.
Em trágico exemplo disso morrem jovens em guerras declaradas por velhos, as maiores baixas sucedem na arma de infantaria, tradicionalmente formada – como o nome indica – por jovens, infantes. São altíssimos os índices de mortalidade infantil, aos quais se dá pouca ou nenhuma atenção: temos em nosso país cerca de 2 milhões de menores totalmente abandonados, além de 20 milhões de menores carentes, ou seja, crianças marginalizadas pelos poderes públicos. Estes números são catastroficamente expressivos da preponderância insidiosa de uma atitude filicida disfarçada, porem firmemente implantada na postura das autoridades.
Na nossa civilização existe uma clara divisão entre classes dominantes e classes oprimidas ou exploradas. A primeira tenta, usando dos mais sórdidos e imorais recursos, manter injustos privilégios e prerrogativas à custa da classe menos favorecida. Historicamente, a formação dessas classes nos mostra que as classes dominantes representam os mais velhos, os que por terem chegado primeiro se apossaram das terras (a mãe terra) e de todos os bens, e partiram para uma posição de confronto e luta contra todos os que nasceram depois. Simbolicamente, são os “Laios” que se atravessam nas encruzilhadas e arrogantemente tentam obstruir a passagem, o crescimento dos jovens. Nesse sentido, o mito edipiano toma uma forma política. Édipo é o herói libertador que luta por sua geração-classe, restabelecendo a ordem natural das coisas, onde os pais devem morrer primeiro e dar lugar aos filhos. Aqui vemos ainda outro mito: os vampiros, indivíduos velhos e viciosos que mantém uma sobrevivência egoísta e doentia a custa do sangue dos jovens.
Em 1968, observou-se um movimento de âmbito mundial que expressou com clareza a realidade de que a luta de classes é uma luta de gerações. Foi um movimento no qual os jovens conclamavam a não se confiar em ninguém com mais de 30 anos e, nos Estados Unidos, Jerry Rubin chegou a lançar o slogan "Kill your parents" – matem seus pais. Observou-se que a luta não era entre patrões e empregados, na medida em que operários mais velhos se colocaram contra o movimento, temerosos de ter que dividir privilégios já conquistados com os colegas mais jovens. Portanto, essa luta, por assim dizer edipiana, de gerações, parece-me uma forma política de questão da institucionalização ao nível social.
Em seu último livro publicado, Bion in New York and São Paulo, W. Bion trata da dificuldade de se abrir espaço na mente para que novas ideias possam brotar. Observa a importância de "na prática da Psicanálise tanto quanto na pratica de qualquer aspecto da vida real" sermos quem realmente somos e deixarmos de lado quem deveríamos ser. Diz ainda que devemos ousar permitir que um "pensamento sem pensador" se aloje em nossa mente – sentimentos e ideias embrionárias que merecem uma oportunidade de se desenvolverem, mesmo sem que se saiba de antemão se tornarão boas ou mas ideias. Diz Bion: "alguém tem de ter a coragem de dizer "mesmo que a criança a quem vou dar a luz seja um monstro, arriscarei". Diz ainda, textualmente, que uma instituição pode ser incapaz de sobreviver às dores do nascimento de uma ideia sem se esfacelar, e termina o livro com a seguinte frase: "vocês não precisam ficar limitados pelas limitações de seus conferencistas, professores, analistas, pais. Quando ficam, então não há espaço para crescimento."
Tomando essas três ideias em consideração; primeiro, a importância de reinstrumentalizar as instituições, segundo, a importância de considerar que os pais são efetivamente muito mais capazes de exterminar os filhos do que o contrario, e de que em Psicanálise o que importa é o não sabido em contraposição ao já sabido, proponho examinar o problema da instituição.
Denominei este trabalho "Ordem ou Progresso", porque penso existir um conflito fundamental entre essas duas ideias: a ideia da ordem e a ideia do progresso. Acho que a ordem é oposta ao progresso, pois progresso está vinculado ao novo, ao filho e ao instrumento, contrafossilizado, pai e instituição. Parece-me importante levar em consideração a diferença fundamental existente, a meu ver, entre a ordem e a organização, entre ordenar e organizar. Organizar, como a própria palavra indica, vem de organismo, vem de vida, ao passo que ordem vem de ordenação, esta muito mais ligada aos valores da morte. As coisas mortas são as coisas ordenadas, ou passiveis de serem postas em ordem, como uma biblioteca ou um cemitério.
As coisas vivas são desordenadas, porem organizadas: uma floresta, por exemplo. Não se vê ordem numa floresta, mas se vê organização, ecossistema, organismos. Em um cemitério vemos ordem, não vemos organismos. No cemitério se veem túmulos enfileirados em ordem, como numa parada militar, numa biblioteca ou num fichário. Acredito que a ordem deva ser subalterna à organização para que possa haver progresso. Dai emerge o seguinte conceito: quando nós vamos investigar uma hierarquia, é preciso determinar se essa hierarquia é uma hierarquia ordenada ou organizada; se funciona como um organismo vivo ou como uma ordenação destinada, por exemplo, a manter o privilegio dos que chegaram em primeiro lugar, dos que nasceram primeiro.