por Monica Aiub
Na obra Ética a Nicômacos, Aristóteles dedica três livros à amizade. Apresenta espécies diferentes de ser amigo e considera a possibilidade de uma amizade constituída a partir de objetivos, interesses comuns, que seria uma forma inferior de amizade, mas ainda uma forma legítima, que poderia evoluir para outras formas e, talvez, chegar à excelência na amizade, sua forma superior: gratuita, validada por si mesma.
Com o advento do cristianismo, a amizade fica em segundo plano, dando lugar ao amor cristão, um amor à humanidade, incondicional e desinteressado. Vivemos o amor cristão hoje? Ou se trata de um discurso utópico, distante de nossas vivências? Talvez seja fácil viver o amor cristão, teoricamente, em abstrações, dizendo que amo a humanidade e me referindo a seres abstratos e irreais.
Amo aquele que me agride? Que me violenta? Que me desagrada? Que me provoca? Que me afeta? Consigo amar incondicionalmente meu agressor, meu opressor? É comum resolvermos a contradição excluindo do conjunto dos seres humanos aqueles que nos incomodam por algum motivo. “Não é humano – afirmamos – é um monstro, é indigno”. E com isso justificamos o fato de não o amarmos. Mas se observarmos bem de perto, o que nos torna humanos? O que nos faz merecedores de pertencer à categoria dos seres humanos que têm direito ao amor cristão? Quantos, entre os humanos, caberiam em nossos critérios? Estaríamos, com isso, tentando tornar o outro aquilo que somos? Não provocaríamos, com isso, um violento processo de exclusão?
Com a amizade é diferente. Escolhemos nossos amigos segundo critérios, condições, e estes nos são singulares. Estabelecemos, por isso, diferentes graus, formas de amizade a partir dos modos como nos colocamos nas relações, e estes não são os mesmos com todas as pessoas com as quais nos relacionamos, nem com as mesmas pessoas em diferentes momentos, contextos ou questões.
Buber, em Eu e Tu, propõe duas formas básicas de relações, a partir do que ele nomeia como palavras princípio: eu-tu e eu-isso. Nas relações eu-isso, ao colocarmos o outro como um isso, nos constituímos também como um isso. Muitas de nossas relações são assim. O próprio Buber afirma que o homem não vive sem o isso, mas o homem que só vive com o isso não é homem.
Estabelecemos relações comerciais, negócios, interesses mútuos e são eles, muitas vezes, que regem nossas interações. Como nos colocamos em tais relações? É comum ouvir pessoas afirmando que “não se pode confiar em ninguém”, criando estratégias de defesa ainda que não precisem defender-se, sentindo-se ameaçadas apenas pela presença do outro, um império de desconfiança parece pautar nossas relações sociais.
Por outro lado, há uma tendência decorrente da estrutura da vida contemporânea a estabelecer, inicialmente, relações de amizade a partir desse tipo de convívio. Amizade e desconfiança são compatíveis? O que acontece quando desconfiamos do amigo? Você já foi traído (a)? O que aconteceu? Como lidou com isso?
Há, também, quem considere impossível estabelecer relações de amizade desinteressada, o que nos colocaria na constante situação de constituir amizades através da partilha de interesses comuns. Confiaríamos, assim, em nossos amigos?
A relação eu-tu, proposta por Buber, é a relação onde me coloco diante de um tu, um outro, e me constituo como um eu a partir da interação no espaço do encontro. Necessito do outro para me constituir, para tornar-me, e isso não é egoísta, não é usar o outro, porque se dá em reciprocidade, na qual o outro também se constitui, torna-se. Esta é a chamada relação dialógica, que se dá entre “iguais”, com amor suficiente para respeitar a legitimidade do modo de ser do outro, ainda que radicalmente divergente do meu, sem impor minhas formas de vida, nem ser absorvida pelas formas do outro.
Quando se constitui o “espaço do entre”, do encontro, cada qual se constitui em novas possibilidades do existir. Assim são estabelecidas as interseções. É possível esse tipo de relação em nosso cotidiano? Nossas formas de vida, estruturadas socialmente, permitem relações desta natureza?
Parece que desconfiamos até de nós mesmos e justificamos essa atitude num processo de generalização de situações vividas, estabelecendo padrões de comportamento e resposta aos seres humanos, distinguindo-os em seres estáticos, bons ou maus em si. Destacamos os comportamentos apresentados em telejornais, novelas e reality shows, olhando nossos parceiros e “amigos” como se estes possuíssem as mesmas características e tendências dos exemplos observados na TV. A personagem da novela trai o marido, minha esposa estaria me traindo? O filho (também personagem) explora o pai, meu filho estaria fazendo isso? O funcionário rouba o empregador na novela, meu funcionário estaria roubando?
Podemos aprender sobre o ser humano observando os “modelos” da TV? E nos telejornais? Corrupção, violência, pais que matam filhos, filhos que matam pais, psicopatas soltos no mundo… é perigoso viver, impossível confiar. E se meu “amigo” for um traidor? Um agressor? Um explorador? Ficam as dúvidas que geram desconfiança.
Fatos como estes existem, mas o que os gera? O tipo de relação que estabeleço com o outro permite chegar a patamares de traição, corrupção e violência? Isso é próprio da natureza humana ou ocorre porque já há uma corrupção desmedida que impregna nosso existir? Como lidar com ela?
Uma visão hobbesiana de mundo nos levaria a crer que não há como confiar, não há amizade. Uma visão aristotélica nos diria que onde há amizade, a justiça é desnecessária, a visão de Epicuro nos apresenta o amigo como o melhor lugar existencial, para Buber, a relação eu-tu, como compreendo a relação de amizade, é a relação que nos constitui, que faz de nós aquilo que somos. Sistemas contraditórios, formas distintas de compreender o mundo e viver, modos diversos de interação.
Deleuze e Guattari, em “O que é a filosofia?” Afirmam que o filósofo se tornou amigo do conceito e rival do outro, talvez por nossa tendência em nos fixarmos em conceitos e rivalizarmos com o outro na defesa de nossas ideias, sem enxergarmos ao outro e a nós mesmos. Com isso, corremos o risco de nos perdermos, apaixonados por nosso próprio caminho, como diria Nietzsche, e nos impedirmos relações e movimentos que nos constituam.
O filósofo, amigo do saber, pode se tornar amigo do outro, mas é preciso o exercício de compreender o outro em sua legitimidade e isto, às vezes, implica em movimentar e construir conceitos, o que é próprio da filosofia. Se cada um de nós exercitasse em seu cotidiano a escuta e a partilha que cabe ao amigo, talvez nossas vidas fossem diferentes, talvez revolucionássemos nossos modos de existência. Por isso o convite: que tal exercitar a amizade?
Referências Bibliográficas
:
AIUB, M. Como ler a Filosofia Clínica. São Paulo: Paulus, 2010.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 2001.
BUBER, M. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2008.
DELEUZE, G; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 2000.
EPICURO. Carta a Meneceu. São Paulo: UNESP, 2002.
NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. São Paulo: Cia das Letras, 2005.