por Fátima Fontes
Introdução
“Numa reflexão sobre os sentimentos e emoções criadores de ressentimentos, Max Scheller cita, dentre eles: a inveja, o ciúme, o rancor, a maldade e o desejo de vingança. Podemos acrescentar ainda a experiência da humilhação que retrata o amor-próprio ferido, a experiência de negação de si e da autoestima suscitando o desejo de vingança. Também o medo, finaliza essa lista que segundo Maquiavel é o principal motor do ódio”.
(Livro: Memória e (RES) Sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Organizado por Stella Bresciani e Márcia Naxara, Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004).
Outra vez nos encontramos neste espaço reflexivo sobre nós e nossos vínculos. Para a elaboração deste texto, fui incomodada pela onda de ressentimentos que andaram rondando minha vida pessoal, acrescida ou talvez complementada pelo longo período de ressentimentos e polarizações com as quais estamos vivendo no nosso mundo relacional privado e social mais amplo, sobretudo, no que tange ao debate e aos desmandos políticos que sobre nós se abatem.
Conceituando de maneira mais direta o que vem a ser o ressentimento, localizamos que se trata de um sentimento plural, visto que é acompanhado de muitos eliciadores e suas consequências também se apresentam de modo plural. Diferentemente da importante situação de “lembrarmos fatos e experiências”, a qual chamamos de “boa memória”, para não cairmos nas tentações dos esquecimentos e das repetições, ao nos “ressentirmos”, somos lançados num lugar de memória de ruminação e de empobrecimento do viver, visto que o ressentido passa a viver da “gratificação” ofertada pelo sofrimento vivido, sem experimentar a salvífica condição da superação e da reparação.
Pretendo por na nossa roda de ideias os principais desencadeadores dos ressentimentos, a saber: a inveja, o ciúme, o rancor, a maldade e o desejo de vingança, acrescidos da experiência de humilhação e do medo.
Mas como vocês já me conhecem, nesse campo reflexivo, finalizarei este artigo de maneira combatente aos ressentimentos, ou seja, refletindo sobre seus principais antídotos: o perdoar e o amar, a meu ver os melhores caminhos para lidarmos com nossos ressentimentos, e os daqueles que nos cercam.
Entre a inveja, o ciúme, o rancor, a maldade, humilhação e medo: quantos dissabores.
Passeiam em nossa natureza humana elementos de luz e de sombras, como tão bem colocou Santo Agostinho, e nesse espaço sombreado de nossa psique se alojam sentimentos que nos afastam uns dos outros e nos impedem de nos desenvolvermos afetiva e relacionalmente.
Inveja
Na inveja, experimentamos aquele pernicioso estado em que somos inoculados pelo desejo de que seja destruído tudo aquilo que o outro tem e que nós não temos, sejam coisas materiais, sejam: a forma de ser e de se apresentar ao mundo do “outro” que nos torna infeliz, afinal o invejoso rejeita sua própria forma de ser e aquilo que tem, e desejaria ser e ter a forma do outro que ele inveja.
Não se trata de admirar e desejar atingir a forma ou estado de ser do outro, o que ocupa um espaço iluminado na psique de quem admira alguém, mas o que diferencia a inveja da admiração é o caráter destrutivo, ao se sentir inveja do outro, automaticamente se acende o desejo de destruição, e seja, com estratégias indiretas ou mesmo direta, a meta passa ser uma só: promover o “desassossego” do invejado, até que ele perca seu estado de bem-estar e de conforto.
Ciúme
No ciúme ocorre algo muito próximo à inveja, muda somente que o grande objeto de cobiça é o afeto de alguém, o enciumado, longe de gostar muito e querer proteger aquele a quem ama, apresenta-se como uma pessoa muito insegura acerca de si mesma, e por isso se sente ameaçada por qualquer tipo de afeto que possa ser lançado em outra direção que não a ela mesma. Criam-se verdadeiros polos de adoecimento relacional e de conflitos, uma vez que essas pessoas que nutrem o ciúme tendem a fazer de seus objetos de amor verdadeiros reféns.
Rancor
No rancor, como na maldade e na humilhação o grande “trunfo” de quem os alimenta é acompanhar a queda psicológica e social do outro, mesmo que em pequenas doses, ou seja: quanto mais esse “outro” que é culpabilizado interminavelmente, pelo rancor e maldade de quem o sentencia e pune, se apresenta em condição de dor e humilhação, mais satisfação é produzida, como se o gozo passasse a ser testemunhar o “outro” em grande sofrimento.
Medo
O medo produzido em nós, o mais das vezes impetrado em nossa psique, por cuidadores “autoritários” que só conseguiam estabelecer limites coagindo e humilhando o subordinado a eles, nos torna inseguros de nossa potência o que o mais das vezes nos lançará, ao crescermos, em grandes abismos de ódios e de ressentimentos, aonde tenderá a haver uma transferência das humilhações sofridas para novos espaços de violência impostas, ou seja, aquilo que me fez sofrer, como numa corrente do mal, usarei para que outros sofram.
E são esses alguns dos modos pelos quais nos tornamos “ressentidos”, primeiro conosco, e na sequência, com aqueles com quem nos relacionamos. O viver do “ressentido” se apresenta como um infindável plano de “vingança”, contra qualquer erro cometido contra o que ele julga ser “a forma que ele idealizou”. E a ruminação do seu sofrimento dá origem ao prazer de ruminar o sofrimento do outro, ou seja, se instala um ciclo perverso de pequenas, médias e grandes violências.
Em busca do amar e do perdão transformadores
E haverá saída para tanto mal? Creio que sim, carregamos também aspectos iluminados em nossos mundos interiores, lembram?
Seguindo as grandes lições trazidas pela biologia, constatamos, segundo o biólogo chileno Humberto Maturana, que só não fomos destruídos como espécie animal da terra, por havermos engendrado ao longo de nossa existência animal e social, atividades apaziguadoras, cuidadoras e protetoras uns com os outros, o que ele nomeia de conduta de amar.
Percebam que para esse cientista, não se trata de amor, sentimento que se liga às paixões e que por isso pode se alterar profundamente, e sim de um padrão comportamental de amar, que revela a vontade de fazer o bem ao outro, de deixá-lo viver em paz e de nós mesmos podermos viver em paz.
Portanto, a esse amar atitudinal se somará uma alta dose de desidealização e (des) padronização das relações, o que permitirá que se crie uma fronteira de respeito e tolerância para com quem se apresenta, pensa, sente e age diferente de nós.
Da mesma forma, creio como o evidenciei no tópico anterior, que para combater o “modus operandi” do ressentido, que se baseia no prazer de condenar o outro ao sofrimento, que ele nutre em si, só mesmo a partir de altas doses de perdão. Essa condição iluminadora de qualquer convivência humana, afinal, somos todos humanos, cometemos erros, e nos esforçamos, o mais das vezes, em ser melhores do que fomos ontem.
O perdão concedido a nós mesmos e ao “outro” que errou, em nossa percepção, produz um “degelo” do ressentimento e de todos os maus sentimentos que lhe deram origem, poderíamos chamá-lo de “detox da alma”.
Há uma verdadeira desintoxicação emocional e biológica, afinal, nosso corpo é um todo integrado, logo, os maus sentimentos atingem nosso organismo interna e externamente, nos deixam com uma expressão pesada, entristecida e infeliz, isso sem falarmos na interferência negativa causada em nosso cérebro, e sua produção das substâncias do ânimo e no nosso sistema defensivo, sobre nossas células “T”, deixando-as fragilizadas para nos defender dos sistemáticos ataques aos quais estamos expostos.
Círculos restaurativos
Como forma evolutiva de tratarmos nossos desafetos e constrangimentos relacionais, tem surgido, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, a proposta de Círculos Restaurativos, compondo uma Justiça Restaurativa, que funcionam na contramão dos grupos de Justiceiros, que trazem de volta a barbárie humana, “vingando” os ressentidos.
Nos Círculos Restaurativos do Sistema Judiciário, os operadores do Direito promovem uma “roda de conversa” entre vítimas e algozes, para que aquele que violentou o espaço do outro possa mostrar arrependimento, falar sobre si, ouvir o violentado e pedir perdão. Esse método tem se mostrado eficaz a tal ponto, que tem se expandido para as Escolas, como forma de se resolver os conflitos relacionais e, sobretudo, o destrutivo processo de Bullying.
E para terminar…
Desejo ter atingido as metas propostas nessa reflexão e que foram lhes apresentadas na introdução do texto, e como sempre termino, me vali, para reforçar minha crença na transformação das realidades, de uma linda canção de um filme.
Trata-se da canção “How does a moment last forever?” (Como um momento dura para sempre?), do filme recentemente produzido pelos estúdios Disney: A Bela e a Fera, que nos apresenta o antigo conto francês onde uma maldição é lançada sobre alguém e que só poderá ser quebrada por uma possibilidade de amar correspondida, tudo a ver com nosso texto, não?
Que ao ouvir a canção, possamos ser embalados pelas boas lembranças, essas que nos trazem esperança, e fazem diminuir os espaços de ressentimento de nossas vidas.
Até o próximo texto.
How Does a Moment Last Forever
Céline Dion
Compositor: Tim Rice & Alan Menken
How does a moment last forever?
How can a story never die?
It is love we must hold onto
Never easy, but we try
Sometimes our happiness is captured
Somehow, our time and place stand still
Love lives on inside our hearts and always will
Minutes turn to hours, days to years and gone
But when all else has been forgotten
Still our song lives on
Maybe some moments weren't so perfect
Maybe some memories not so sweet
But we have to know some bad times
Or our lives are incomplete
Then when the shadows overtake us
Just when we feel all hope is gone
We'll hear our song and know once more
Our love lives on
How does a moment last forever?
How does our happiness endure?
Through the darkest of our troubles
Love is beauty, love is pure
Love pays no mind to desolation
It flows like a river through the soul
Protects, perceives and perseveres
And makes us whole
Como Um Momento Pode Durar Para Sempre
É assim que um momento dura para sempre
Como uma história pode nunca morrer?
O amor que devemos nos apegar
Nunca é fácil, mas nós tentamos
Às vezes nossa felicidade é capturada
De alguma forma, nosso tempo e lugar ficam imóveis
O amor vive no fundo de nossos corações e sempre viverá
Minutos viram horas, dias em anos e se passam
Mas quando todo o resto for esquecido
A nossa música ainda viverá
Talvez alguns momentos não sejam tão perfeitos
Talvez algumas memórias não sejam tão doces
Mas temos que passar por alguns maus momentos
Ou nossas vidas serão incompletas
Então, quando as sombras nos alcançarem
Quando sentirmos que toda a esperança se foi
Vamos ouvir a nossa canção e saber que mais uma vez
O nosso amor vive
É assim que um momento dura para sempre
Como a nossa felicidade pode aguentar?
Passar pela escuridão dos nossos problemas
O amor é beleza, o amor é puro
O amor não se importa com a desolação
Ele flui como um rio pela alma
Protege, percebe e persevera
E nos faz sentir completos